No Taqui Pra Ti
Duas mestras Xakriabá que trabalham com barro – dona Libertina Ferro e dona Lurdes Evaristo – foram convidadas pela Faculdade de Arquitetura da UFMG para serem professoras da disciplina Arquitetura e Cosmociência. Elas moram na terra indígena de São João das Missões, norte de Minas, e viajaram pela primeira vez a Belo Horizonte. Encerraram o Programa Saberes Tradicionais com aulas práticas, construindo no campus Pampulha da Universidade Federal uma casa tradicional de pau-a-pique com pinturas artísticas de pigmentos de toá e telhas de barro. Foi quando um aluno, com calculadora à mão, perguntou:
– Como é que se mede o espaçamento da madeira? Qual a quantidade de barro?
– São três mãos cheias de barro para cada quadrado – foi a resposta de uma das mestras, que encheu a mão e mostrou na hora como se fazia.
Os futuros arquitetos indagaram quanto tempo durava uma casa xakriabá e foram informados que entre quatro a seis anos, dependendo da fase da lua no momento de retirar o barro. Um deles, então, ofereceu uma técnica capaz de manter em pé durante a vida toda casas tão bonitas como aquela.
– Não, meu filho. Obrigado, mas isso é perigoso. Se aceito sua oferta, como é que vou ensinar meus filhos e netos a construir? Não é a casa que tem que durar, mas o conhecimento. A casa usada se desfaz justamente para que eles observem como se faz uma nova. A casa cai, mas se fica a forma de aprender, a gente levanta outras e é assim que o conhecimento permanece, circula e se renova.
A construção da casa, em 2015, foi narrada por Célia Xakriabá Mīndã Nynthê nesta terça-feira (31), na Universidade de Brasília (UnB) durante a defesa de sua dissertação de mestrado, que discute a reativação da memória e a lógica territorializada, com reflexões epistemológicas sobre os caminhos da educação numa temporalidade marcada pelo barro, o jenipapo e o giz.
Memória nativa
Célia Nunes Correa, 29 anos, pós-graduada no Mestrado Profissional em Sustentabilidade da Universidade de Brasília (UnB), pesquisou as experiências de educação Xakriabá, um povo que vive em 35 aldeias, com população estimada em torno de 11 mil pessoas, cuja língua original pertence ao tronco Macro Gê. Para isso, ela trabalhou o conceito de memória nativa, que é antiga, ancestral, e o de memória ativa, reativada a partir de matrizes do passado, que estão sendo permanentemente atualizadas.
Na sua infância, quando não existia escola na aldeia, Celinha foi iniciada nas práticas culturais por seus pais: dona Maria e o líder indígena Hilário e pelo avô José de Souza Freire, mestre na linguagem cantada e na entoação de versos – as loas. Esse foi “o tempo do barro”:
– Foram conhecimentos adquiridos e experiências vividas transmitidas pelos mais velhos aos mais novos, importantes na preservação e na construção da identidade. As mãos que moldam um pote ou uma panela de barro trazem um pedaço do território e toda a sua sabedoria. A gente aprendeu a plantar, coletar, fazer artesanato, principalmente de barro – escreve Célia.
Na sua trajetória de vida, que é também a dos Xakriabá de sua geração, a infância é marcada pelo “barro”, mas a juventude é o “tempo do jenipapo” (grafado com “g” por razões que ela explica), que fornece a tinta usada na pintura, cujos traços são portadores de conhecimento.
– Foi na minha juventude que aprendi com os mais velhos a arte das pinturas corporais. Tentaram tirar de nós essa prática, seja pela proibição, seja pelo constrangimento imposto pelos não-índios. Nesse período de perseguição, os grafismos pintados eram guardados nos objetos de madeira, nas cerâmicas, na memória das pessoas e até nos paredões das cavernas. Eles nunca foram esquecidos. Depois de um tempo os objetos foram desenterrados, reativando a memória e o ritual, segundo depoimento do líder Valdemar Xavier.
Memória ativa
– Consideramos que cada passo no preparo da tinta é tão importante quanto pintar o corpo, tudo faz parte do ritual de se pintar – escreve Celinha, que cita o pajé Vicente: “Não é só a pele que está sendo pintada, mas o próprio espírito”. No corpo se tece e escreve histórias, se registra saberes. As marcas e os traços têm significados. Quem sabe ler os grafismos, enxerga muito mais que um simples desenho.
O povo Xakriabá mantém forte relação com as pinturas corporais, “para além da pele, para além da estética”. Lá estão registados os benzimentos e as plantas que curam, a observação da natureza, as profecias do tempo, que conseguem prever chuva, sol e outras “temperalidades” na expressão usada por dona Maria, para quem “o tempo deve ser como tempero, cada um tem o seu diferente”.
O “tempo do giz” é marcado pela chegada da escola, no início uma ferramenta colonial de dominação, que usou o apagador para eliminar a memória indígena e para suprimir os ancestrais processos de aprendizagem. Com o quadro assim apagado, o giz só escrevia nele uma versão única da história do Brasil. Quando os Xakriabá perceberam o caráter selvagem, truculento e devorador da escola, decidiram “amansá-la” para utilizá-la em seu favor, com uma perspectiva epistemológica singular, um calendário sociocultural próprio e até o nome com que a escola era batizada.
– Antes, as escolas tinham nomes de gente morta, de políticos, foi uma conquista conseguir nomeá-la com uma palavra na língua Xakriabá. Kanatyo Pataxó diz que as nossas escolas são lugares de conhecimento vivo, por isso não devem ter nome de pessoas mortas, porque a escola tem que inspirar a vida, assim o nosso conhecimento também permanece vivo. Foi assim que começamos a amansar a escola.
Calendário sociocultural
A pesquisadora discute esse “amansamento” a partir das experiências na Escola Estadual Indígena Xukurank, que significa “Boa Esperança”, localizada na aldeia Barreiro Preto, onde ela foi aluna e depois professora de cultura. Os feriados letivos são outros. Em todas as escolas das aldeias, duas datas são celebradas: 12 de fevereiro, quando foi assassinado, em 1987, o cacique Rosalino na luta pela terra e o 25 de abril, morte do Cacique Rodrigão ocorrida em 2005. Durante as semanas dos dois feriados, os professores trabalham os conteúdos relacionados a esses acontecimentos.
– A Escola Xukurank – escreve Célia – está voltada para a realidade do nosso povo, valoriza a cultura, o modo de vida, a história de luta, o manejo do território e as pesquisas com os mais velhos, além de trabalhar as disciplinas curriculares. Seu caráter de educação subversiva e transgressora lhe confere um lugar potente de articulação entre saberes. Temos aulas de cultura, de língua e de direitos indígenas, mas também de matérias convencionais com outras metodologias. Em Matemática trabalhamos a geometria das pinturas corporais, em Geografia o mapeamento do território e assim por diante.
Os conhecimentos dos velhos registrados na dissertação de Celinha foram obtidos na Oficina “Reativadores de memória: memória nativa e memória ativa”, que ela organizou como forma coletiva mais eficaz do que uma entrevista individual para coletar os saberes tradicionais num espaço interativo, de modo que quando uma pessoa estava contando uma história, a memória de um reativava a memória do outro. Esse foi um diálogo de memórias nativas e ativas. Assim, ela conclui:
– Quanto mais conheço o novo, mais sinto a necessidade de retomar as minhas origens. A experiência do mestrado reforçou mais uma vez a compreensão de como eu mesma me constituo a partir dessas origens: do barro, do genipapo e do giz.
P.S. 1 Célia Nunes Correa Xakriabá. O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. Brasília – DF, 2018, 213 p. Dissertação do Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais. Centro de Desenvolvimento Sustentável. UnB. Banca: Cristiane Portela (orientadora), Juliana Merçon (Universidad de Veracruz – México), Mônica Celeida R. Nogueira (UnB), professora Joana Xakriabá (convidada especial como examinadora indígena) e José R. Bessa Freire (Uerj-Unirio).
P.S. 2 – Depois do curso dado na UFMG, professores e alunos de arquitetura se deslocaram para a aldeia da Caatinguinha e ali conviveram durante duas semanas com os Xakriabá, com quem construíram um centro cultural.
Obs. Um amigo sugeriu para que hoje, nesse espaço semanal, fossem comentadas as entrevistas de Jair Bolsonaro no Roda Viva e na Globo News. Peço desculpas. É que a dissertação da Celinha, que fala em “amansar” a escola, é 500 mil vezes mais importante para o Brasil do que as ignorantes fanfarronices de um canastrão que quer barbarizar a escola. De qualquer forma, aqui vão três links de colunas anteriores.
1. De Maria Meirelles para Jair Bolsonaro (2016)
2. Bolsonaro: o cônego e o myramembeca (2014)
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Fotos: Célia, Vagney e Sandra Xakriaba, Edgar Correa Kanaykõ e Arquivo do Jardim Mandala
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