Lembrai-vos dos prisioneiros, como se vós fôsseis prisioneiros com eles, e dos que são maltratados, pois também vós tendes um corpo.
— Hebreus 13:3
— Hebreus 13:3
Vamos às atividades do dia
Lavar os copos, contar os corpos.
— Criolo
Ronilso Pacheco, no Novos DiálogosLavar os copos, contar os corpos.
— Criolo
O capítulo 25 do Evangelho de Mateus, com esta perigosa perícope de 31 a 46, não é uma passagem comum, não é um recurso meramente pedagógico para falar de salvos e condenados. Não consigo sequer imaginar Jesus dizendo aquilo com a tranquilidade com que ela é lida nos nossos sermões. Não é possível, porque é forte demais.
Na ilustração de Jesus, se salvarão aqueles que salvarem outros. Não aqueles que salvarem a alma dos outros, porque esta seria missão inglória, que ninguém é capaz de fazer. É preciso intervir no sofrimento do corpo. A fome, a sede, o ser estrangeiro, a nudez, a enfermidade e o encarceramento violentam o corpo. É o corpo cuja sede rasga a garganta, emudece a voz, resseca o organismo. É o corpo cuja fome enfraquece, é a fraqueza que perturba a capacidade de discernir, mover-se, caminhar, resistir. E em nome da vitória sobre a fome, o corpo é levado a vender-se, ser usado, explorado, abusado. É o corpo cujo encarceramento agride a liberdade, a capacidade de ir e vir. Encarceramento seletivo, com grupo social específico, território específico, cor de pele definida, faixa etária preferencial e “práticas criminosas” bem escolhidas. Encarceramento covarde, cuja palavra final está nas mãos de quem faz questão de exibir o poder, decide o que é passível de pena e quanto custa a liberdade. Quanto custa a liberdade deste corpo negro indomável, delinquente, infrator, maior ou menor, ameaça intimidadora do ordenamento social, elemento perturbador do cotidiano. Corpos marcados à espera do cárcere, nem sempre pelos atos cometidos, mas muitas vezes pelo estigma naturalizado, “a cor padrão” dos atos “criminosos”.
É o corpo, sempre o corpo nu, não apenas pela ausência das vestes, mas nu sem proteção à violência, aos maus tratos, corpo nu e indefeso diante do controle inclemente do estado e das incertezas, riscos e inseguranças da vida social. Acrescentemos a esse entendimento do nu, que não é somente o corpo, mas toda uma vida e existência, a definição de vida nua, oriunda do italiano Giorgio Agamben e tão bem lembrada por André Duarte: “a vida que somente cai na esfera da política na medida em que dela pode ser eliminada sem mais, sem que com isso se cometa um crime”. É este corpo nu, vulnerável, abandonado que marca presença no texto. Quando Jesus lembra estes corpos nus, carentes de vestes – as vestes não são suas roupas, são seus cuidados, seu corpo que (re)veste outros corpos – ele se reporta à ele mesmo. Ele, que seria o Cristo “abandonado”, segundo essa imagem linda e poderosamente refletida por Moltmann em seu O Cristo crucificado. O teólogo alemão afirma que a gente só entende a diferença da “morte de Jesus das outras cruzes na história do sofrimento humano” quando vemos seu abandono por parte de Deus e Pai. “Jesus”, diz Moltmann, “morreu em singular abandono da parte de Deus”. É a força de uma contradição que nos agride. Todos os dias, a vida nua destes corpos violados pela pobreza e pela negação do reconhecimento pede socorro. Estão abandonados, são chacinados, executados, eliminados, desaparecidos, arrastados, agredidos. Corpos nus.
É o corpo do estrangeiro. Não o estrangeiro pátrio, não os exilados nacionais. Os estrangeiros são os “indesejáveis”, novos forasteiros das cidades, vítimas silenciadas da segregação socioespacial, das famílias dos miseráveis expulsos das propriedades dos donos-senhores, no campo e na cidade. Construtores de favelas, mão de obra dos alienados da própria vida, escravos assalariados, removidos à qualquer hora, em função de uma política pública de gentrificação, ansiosa de transformar cidades e territórios em produto. Nesta nova lógica de cidade, o cidadão só é entendido como cliente, aquele capaz de se bancar como usuário de bens e serviços em geral. Como a simples conclusão do geógrafo Márcio Piñon contribui: “cidadão é aquele que pode participar como consumidor e usuário da cidade; o que não pode, encontrar-se-á, cada vez mais, à margem dela”. Os estrangeiros e forasteiros estão também nas ruas, sujos, esquecidos e temidos, aquecidos muitas vezes pelo álcool, pelo crack e pelo tiner. Indesejáveis que são, não cabem nesta terra, não possuem direito ao sol, enfeiam nossas cidades, atrapalham nosso percurso. São corpos soltos. Corpos dispensáveis.
Aí vem o Cristo e se identifica com essa gente, e condiciona o caminho para a tão desejada salvação à coragem e a disposição de ir em direção a essa gente, e nós que já tínhamos nos acostumado a torná-los lugar-comum, casos isolados, invisíveis mesmo. E se eliminados fossem, a sociedade se sentiria confortável. Mas Jesus preconiza o que Paulo compreendeu. A gente lê Paulo dizer que “O” corpo é templo do Espírito Santo (porque não tinha como entender diferente, já que o Espírito foi derramado sobre “toda” carne), mas a nossa leitura é feita como se “alguns corpos” fossem templos do Espírito Santo (corpos convertidos). E assim nos alienamos, ignoramos a profanação dos templos pretos, pobres, desterrados, exterminados, violentados, abusados. Nosso radar para o que identificamos como “profanação moral” do corpo soa tão alto que quase não sobra sensibilidade suficiente para qualquer estrondoso ruído da profanação causada pelo estado, pela violação do direito, pelo racismo estrutural, pela violência que elimina “infratores” como inimigos imperdoáveis. A profanação causada pela seletividade do sistema penal. É uma pena que essas profanações não nos causem indignação, denúncia, oração, protesto e choro. Mas é um risco, porque parece que ela tem a nossa salvação nas mãos.
* O título deste artigo faz referência ao livro de Ana Luiza Flauzina, Corpo Negro Caído no Chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro, lançado pela Editora Contraponto.
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