«O ser humano procura no mito uma forma de fugir de si mesmo. E para tal utiliza-se de todas as formas. Droga, álcool ou mentira. Incapaz como é de adentrar em si mesmo, o ser humano se disfarça. As mentiras e imprecisões lhe proporcionam alguns instantes de alívio, o mesmo conforto provocado por um baile de máscaras. Desta forma, destaca-se daquilo que sente e daquilo que vê…»
(Jean Cocteau, 1889-1963)
«De manhã, debruço-me, debruço-me, e deixo-me cair. Caio de fadiga, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não sei um número, uma data, um nome de rio, uma língua, viva ou morta. Tenho zero em geografia e em história. Se não fossem uns passes de mágica, corriam comigo. Além do mais, roubei os documentos a um tal J.C., nascido em M.L., no dia……, e que morreu com dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.
Esta cabeleira, este sistema nervoso, mal implantados, esta França, esta terra, não me pertencem. Dão-me agonias. Sempre os dispo à noite, em sonhos.
Pois aqui largo o pacote. Que me fechem num hospício, que me linchem. Quem puder que entenda. Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade»
(trecho de O pacote vermelho, tradução de Jorge de Sena)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de junho de 2015)
Neste primeiro semestre de 2015 a França detém os destaques entre as traduções: por um lado, o atualíssimo e perturbador Submissão, de Michel Houellebecq; por outro, a versão tardia (realizada por Wellington Júnio Costa para a Editora Autêntica) de A Dificuldade de Ser[1], um dos mais importantes títulos de um autor cultuado (devido às suas realizações em múltiplas áreas: poesia e romance, teatro, cinema, até designer e ilustração[2]), no entanto escassamente traduzido: Jean Cocteau.
Em 1947, exaurido pela realização do clássico A bela e a fera, uma de suas obras-primas, tomado por uma doença que se traduzia em torturante e dolorosa urticária, ele se isolou: «Os médicos me haviam prescrito a montanha, a neve. É, diziam eles, o único tratamento eficaz. Meus micróbios desapareciam como por encantamento»[3].
Não desapareceram, assim como suas obsessões («Meu pior defeito vem da infância como quase tudo o que tenho. Pois eu continuo a ser vítima desses ritos doentios que fazem das crianças seres obsessivos que colocam seu prato de uma determinada maneira sobre a mesa e saltam algumas linhas do passeio»). Admirador de Montaigne, pôs-se a escrever 31 pequenos ensaios em que temas “gerais” (conversa, amizade, sonho, medida dor, morte, frivolidade, juventude, beleza, riso e por aí vai) servem como mote para reminiscências e reflexões. O polêmico “príncipe frívolo” do surrealismo, personagem de si mesmo, figura performática da alta cultura francesa, de repente debruça-se sobre si mesmo, a existência e os valores morais, nos moldes do estilo clássico que marcou a prosa de seu país, com frases lapidadas como: «É por onde escapamos que a lenda caminha»; «Invisível sob tantas fábulas e monstruosamente visível por meio delas»; «O luxo do mundo está na perda».
O título já sinaliza a simbiose entre a superfície anedótica («Minha lenda afasta os tolos. A inteligência suspeita de mim. O que me sobra entre esses dois?»[4]) e as correntes profundas que fazem de certas poesias (Plain-Chant é uma delas) e peças (A voz humana, A máquina infernal), mais alguns dos filmes de Cocteau, momentos fundamentais da arte do século passado: «Eu sinto uma dificuldade de ser. É o que responde o centenário Fontenelle quando ele vai morrer e seu médico pergunta: Senhor Fontenelle, o que o senhor sente? Só que a sua é da última hora. A minha data de sempre».
Pode-se indicar com entusiasmo um título que praticamente cai no vazio, com suas menções recorrentes a obras remotas ou inéditas entre nós? Sim, porque mesmo com o peso do teor biográfico e das referências culturais, o charme indispensável de A Dificuldade de Ser reside mais na luminosa miríade das reflexões minimalistas (ainda que autocentradas, até mitômanas, quem poderá dizer?) incrustadas na poesia da prosa de um homem que conseguiu traduzir em imagens cinematográficas indeléveis fábulas e mitos (como o de Orfeu): «É possível que eu acorde um belo dia sem sofrer de algum membro e que eu me engane completamente nos meus prognósticos. Será melhor assim, mas eu prefiro ser pessimista. Sempre fui, por otimismo. Eu esperava demais para não me precaver contra uma decepção». E como não se identificar com a desconfiança lírica diante da suposta exatidão numérica: «Dois mais dois são quatro? Gustave de Rothschild dizia: Dois mais dois são vinte e dois. E duas cadeiras mais duas maçãs não são quatro»?
Também a primorosa capa de Diogo Droschi para A Dificuldade de Ser já é um dos pontos altos deste ano, dando a ideia precisa desse homem multiforme e ainda incrivelmente moderno: «Gostaria de dizer a verdade/Gosto da verdade. Mas ela não gosta de mim/A verdade é esta: a verdade não gosta de mim/Mal acabo de dizê-la, ela muda de rosto e volta-se contra mim/Tenho o ar de mentir e todos me olham de revés…/Mentiroso, eu? No fundo, já não sei. Sinto-me confuso/Que tempo o nosso! Serei um mentiroso?/Pergunto–lhes. Sou antes uma mentira/Uma mentira que diz sempre a verdade» (trecho de O Mentiroso[5]).
TRECHO SELECIONADO
«O que é a linha? É a vida… Na obra do escritor, a linha prima pelo conteúdo e pela forma. Ela atravessa as palavras que ele reúne. Emite uma nota contínua que nem o ouvido nem o olho percebem. De algum modo, ela é o estilo da alma e se essa linha parar de viver, se ela desenhar apenas um arabesco, a alma estará ausente e a escrita morta. É por isso que eu repito incessantemente que o progresso moral de um artista é o único que vale a pena, já que essa linha debanda desde que a alma enfraquece a sua chama. Não confunda progresso moral e moral. O progresso moral consiste apenas em resistir…»
NOTAS
[1] “La difficulté d’être”, publicado originalmente em 1947 e revisado pelo autor pouco antes de sua morte, em 1963
[2] «Por que você escreve peças de teatro? Pergunta-me o romancista. Por que você escreve romances? Pergunta-me o dramaturgo. Por que você faz filmes? Pergunta-me o poeta. Por que você desenha? Pergunta-me o crítico… Sim, por quê? Eu me pergunto. Provavelmente para que a minha semente se espalhe por toda parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave…»
[3] «Ocorre que há seis meses eu sofro cada minuto, vejo a dor tomar todas as formas, frustrar a medicina e continuo alerta e corajoso…»
[4] «…Não aceito, porém, que me tolerem. Isso fere o meu amor ao amor e à liberdade…» (cito o trecho de O livro branco na tradução de Aníbal Fernandes, lançada pela Assírio & Alvim)
[5] Que eu cito em tradução de Gastão Cruz, em O filho do ar, edição da Relógio D´Água).
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