Há muito tempo o latifúndio improdutivo deixou de ser o principal inimigo da reforma agrária. Os grandes latifundiários estão sendo engolidos pelas multinacionais. Em 2007, quase no começo do segundo mandato de Lula, o programa de produção de etanol como combustível, o velho e conhecido álcool, foi um grande presente para o agronegócio. Soma-se a ele a produção acelerada de grãos como a soja, que lembra, em alguns casos, a velha fórmula da monocultura. Etanol e grãos para exportar estão na base da economia rural do Brasil e significam, digam o que disserem a presidenta e seus ministros, uma clara opção pelo agronegócio contra qualquer outro projeto de reforma agrária.
Exemplos não faltam. Há mais de sete anos a Cargill estadunidense, maior empresa de alimentos do mundo, abocanhou todo o complexo de produção de etanol da Cevasa em São Paulo. A Cargill, para refrescar a memória, mantém um porto só para ela em Santarém para a exportação de soja. Porto que foi investigado pelo IBAMA sob acusação de danificar o meio ambiente. A Cargill não está sozinha na ânsia de abocanhar o potencial agrícola do Brasil. Faz tempo, George Soros comprou uma usina em Minas Gerais por 200 milhões de dólares e até os criadores da Google, segundo relato no Portal Exame, andaram interessados numa usina de etanol em São Paulo. Já na época do governo Lula o álcool combustível foi o principal tema dos encontros dele com Bush.
Na época colonial, o ciclo da cana de açúcar reforçou e consolidou a concentração da terra. Não dividir, não promover a partilha como Lincoln fez nos Estados Unidos, já vinha sendo a palavra de ordem da coroa portuguesa desde os tempos das capitanias hereditárias e das sesmarias. Essas só deixaram de ser o estatuto da propriedade rural em 1850 com a Lei da Terra, que não fez mais do que garantir os grandes latifúndios doados e só reservar as terras devolutas bem distantes para a emigração europeia que começava a tomar pé. Pouco antes da independência, José Bonifácio lançou-se contra a concessão das sesmarias. O patrono da independência rodou, como rodou João Goulart em 1964, pouco depois de assinar o decreto desapropriando as propriedades com mais de 100 mil hectares à beira das rodovias e ferrovias.
Em poucas palavras, no Brasil mudam-se as leis, mudam-se os regimes, mas a concentração da terra permanece como sendo o melhor retrato da vergonhosa distribuição da renda no País.
Com a primeira eleição de Lula, muita gente pensou que finalmente a reforma agrária seria deslanchada. Além do PT no governo, uma série de fatores indicava em direção à reforma que fixasse o homem no campo, que priorizasse o trabalho e a produção de alimentos sem a voracidade de lucros do agronegócio. Num primeiro tempo, o governo ficou por assim dizer esquizofrênico: de um lado o INCRA mais ou menos favorável à reforma proposta pelo MST e do outro o Ministério da Agricultura totalmente do lado do agronegócio. A febre do etanol fez a balança pender para o que podemos chamar de capitalização predatória do campo.
O problema, no entanto, não é apenas esta aberração que é a produção de álcool para movimentar automóveis. Vários estudos apontam para o perigo da produção desenfreada de grãos e outros alimentos só voltada para os mercados dos países ricos e os tais emergentes, enquanto a periferia sem dinheiro para participar do esbanjamento passa fome. É claro, evidente, que uma agricultura arcaica, sem empregar novas tecnologias, não tem condições de alimentar um Planeta que já abriga cerca de sete bilhões de seres humanos.
No Brasil, a proposta do MST é, como diriam os marxistas da velha guarda, diametralmente oposta à do governo, quando este escancara as portas para as multinacionais da alimentação. Em termos simples, o MST propõe a formação de cooperativas e comunidades agrícolas para abastecer a população, enquanto o agronegócio com seus aglomerados cada vez maiores só pensa numa coisa: satisfazer o mercado. É chover no molhado dizer que o agronegócio é mais eficiente, muito mais produtivo.
Claro que é, mas não interessa aos deserdados, aos necessitados, aos que passam fome ou comem mal, uma produção predatória que não chega nunca em suas mesas. Geralmente, o que não é absorvido pelo mercado (dos ricos) é jogado fora. O Brasil produz excesso de grãos, do mesmo modo que, na Europa, existem armazenadas montanhas de queijo e manteiga, porque o mercado não pode absorvê-las. O grosso da população mundial, e do Brasil em escala nacional, não tem nada a ver com o mercado, ainda que tenha a mesma constituição física dos ricos. Quer dizer, se não comer, morre.
Vamos dizer assim: o agronegócio é a solução ideal para o mercado, para enriquecer, para criar uma nova elite de dar inveja aos velhos donos de engenho e aos quatrocentões das plantações de café. Qualquer economista de porta de ministério pedindo emprego pode mostrar isso com gráficos e o diabo. A reforma agrária proposta pelo MST e outros grupos sociais na certa diminuirá a eficiência e o ritmo da produção, mas será para alimentar a população, para integrar o máximo possível de pessoas no processo produtivo, uma vez que ainda estamos, infelizmente, encarcerados na chamada civilização do trabalho.
A reforma do MST vai, portanto, contra a maré mundial, contra o mercado, contra a globalização, conforme berra dia e noite em nossos ouvidos a televisão, os jornais, e os blogs financiados. Felizmente, o outro lado da moeda da badalada globalização é a crescente internacionalização da luta e do protesto. MST na sua saudável aglomeração de grupos autônomos já teria sido sufocado se não existisse a Via Campesina e outras organizações que brotam nos países latino-americanos. O confronto não é coisa de Brasil. É global. É a consciência de que sete bilhões precisam comer, preservando ao máximo as reservas do Planeta.
Ou será preciso esperar pelo chacoalhão?
Chacoalhão é o termo empregado pelo ambientalista estadunidense Lester Brown, descrito como o guru do pensamento ecológico e autor de mais de 50 livros, entre eles Eco-Economia. Ele prevê uma catástrofe de proporções mundiais afetando o abastecimento alimentício, o chacoalhão. Aí, pensa ele, toda a política de desperdício do agronegócio pode cair da noite para o dia. Ele lembra, em termos de comparação, o ataque japonês contra Pearl Harbour no dia 7 de dezembro de 1941. Imaginou uma pesquisa realizada no dia 6 de dezembro quando certamente 85% dos estadunidenses responderiam “de jeito nenhum” à pergunta se os EUA deviam entrar na guerra. No outro dia tudo mudou, os EUA declararam guerra ao Japão. Dizem que Roosevelt sabia do ataque e deixou acontecer, mas isto é outra história.
Quanto ao chacoalhão, devido ao desperdício generalizado, não tenham dúvidas, se ele vier, não será apenas fome, mas muito sangue. Ditaduras, governos com ogivas nucleares querendo tudo para eles, mas também levante das massas famintas. Pode ser até que voltem a cantar a Internacional em praça pública sem precisar de bandeiras nacionais. A fome não tem pátria.
Tarcísio Lage, jornalista, escritor, começou na Última Hora de Belo Horizonte no início dos anos 60. Com o golpe de 1964 teve de deixar a cidade e o curso de Economia na UFMG. Até 1969, quando foi condenado pela Injustiça Militar, trabalhou em várias redações do Rio e São Paulo. Participou da tentativa de renovação da revista O Cruzeiro e da reabertura da Folha de São Paulo, em 1968. Exilado no Chile no final de 1969, trabalhou, em seguida, em três emissoras internacionais: BBC de Londres, Rádio Suiça, em Berna, e Rádio Nederland, em Hilversum, na Holanda, onde vive atualmente. As Tranças do Poder é seu último livro.
Direto da Redação é um fórum, editado pelo jornalista e escritor Rui Martins
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