Um imperador sob suspeita
Conhecido como incendiário, Nero teria sido vítima de interpretações anacrônicas de historiadores antigos
Fábio Duarte Joly
1/2/2013
- O homem que matou a mãe, o meio-irmão e a própria esposa. Um tirano excêntrico, cujo reinado foi marcado por embates com a aristocracia, mas que se considerava um artista talentoso. Cantava, tocava cítara e escrevia poesia, participando de apresentações públicas e tendo inclusive viajado àGrécia nos anos de 67 e 68 para participar de competições artísticas. Mas foi principalmente como um incendiário enlouquecido que Nero entrou para a história.Sua biografia, porém, pode ter sido distorcida pelos historiadores que retrataram a sua vida até quase 200 anos depois. Uma diferença de tempo que não afetou apenas a conferência às informações, mas a interpretação desses próprios dados.Seu reinado é conhecido basicamente por meio das obras de três autores: Tácito (Anais, livros 13-16), Suetônio (Vida de Nero) e Dião Cássio (História Romana, livros 61-63). Essas obras foram compostas entre a primeira metade do século II e a primeira metade do século III, ou seja, bem depois dos eventos que se propõem a narrar. Esses autores estão alinhados a uma tradição negativa que se propagou a respeito de Nero nos círculos políticos em Roma após sua morte. A visão que eles têm do imperador se deve, em larga medida, a uma visão dos aristocratas contra aqueles que tentaram concentrar demais o poder. Os eventos que eram desfavoráveis ao imperador foram destacados em detrimento daqueles que fossem positivos. Por isso a construção da figura histórica de Nero pode ser compreendida a partir da comparação entre os diversos testemunhos de época e, mesmo posteriores, que relatam suas ações.Nero governou o Império Romano entre 54 e 68. Ascendeu ao trono com 17 anos de idade, com a morte do imperador Cláudio, provavelmente envenenado por sua terceira esposa, Agripina, que anos antes fizera com que o marido adotasse Nero, filho dela de um casamento anterior. Com o apoio dos pretorianos (a guarda imperial), Agripina conseguiu garantir a ascensão de Nero ao trono, o que, no entanto, não evitou que ele a eliminasse em 59 para afirmar ainda mais sua autoridade. Considerado inimigo público pelo Senado, e enfrentando um levante militar na Gália, o imperador suicidou-se em 68.O principal alvo da crítica de historiadores e biógrafos na Antiguidade a Nero foi o palácio que ele ergueu após o incêndio de Roma em 64, sua “Casa Dourada”, a Domus Aurea. O complexo palaciano foi ampliado e chegou a cobrir uma área estimada em cerca de 50 hectares. A Domus Aurea não compreendia apenas uma residência no monte Palatino, onde os imperadores costumavam construir suas moradas, mas um enorme parque – incluindo um lago artificial – que cobria as colinas do Célio e Esquilino, assim como o vale entre ambas, área hoje ocupada pelo Coliseu.“O lago, análogo a um mar, era rodeado de edifícios que davam o aspecto de uma cidade”, escreveu Suetônio, fazendo questão de ressaltar a suntuosidade da construção: “Além disso, planícies com terrenos cultivados, vinhedos, pastagens, florestas com uma quantidade extraordinária de animais domésticos e selvagens de todas as espécies. Nos demais lugares do palácio, tudo se cobria de ouro e se incrustava de gemas e madrepérolas”. Tudo isso era, na interpretação de Suetônio, uma demonstração de poder do imperador frente aos demais aristocratas. Mas, como uma espécie de compensação, essa construção foi acompanhada de uma reurbanização das partes da cidade que ficavam além do palácio. Medidas que, para Tácito, trouxeram melhorias à cidade. Nero ordenou que ruas fossem traçadas de forma regular e alinhada, que os edifícios tivessem a altura reduzida e foram proibidas as paredes comuns para impedir a disseminação do fogo.Sobre o incêndio provocado por Nero, Tácito escreve o seguinte em seus Anais: “Seguiu-se uma grave calamidade, atribuída por uns a Nero, por outros ao acaso”. Havia diferentes versões sobre o incêndio à época de Tácito, algumas inocentando o imperador. Mas sua narrativa contribui para sustentar uma leitura ambígua da participação do imperador no evento. Por exemplo, é negado que tenha havido qualquer esforço coletivo no combate às chamas: “Ninguém ousava combater o fogo pois ouviam frequentes vozes ameaçadoras que o impediam, e até mesmo se viram pessoas abertamente lançando tochas e dizendo-se autores do incêndio, ou para exercerem com mais liberdade o roubo ou porque tivessem mesmo ordens para isso”.Suetônio é mais direto em relação a apontar o culpado. “Desgostoso com a deformidade das velhas construções e com as vias estreitas e tortas, [Nero] incendiou a cidade tão abertamente que muitos antigos cônsules não se atreveram a impedir seus camareiros, embora deparassem com eles portando tochas.” Já Dião Cássio menciona que “guardas noturnos” – em alusão às coortes de vigília de Roma, tropas formadas por libertos responsáveis por combates a incêndios – estavam presentes, mas apenas para saquear e começar novos focos de incêndio.Os relatos paralelos entre as fontes indicam que não houve uma atividade organizada pelas coortes de vigília para debelar o fogo. Mas a imagem de Nero como incendiário, no entanto, não deve ser aceita de imediato. A partir da leitura de Tácito, o fogo parece ter ocorrido em dois estágios. Irrompeu inicialmente na parte oriental do Circo Máximo, espraiando-se rapidamente devido às casas de madeira e à ação do vento pelas ruas tortuosas e estreitas. Esse incêndio durou cerca de seis dias, quando o monarca encontrava-se em Âncio, a 50 quilômetros do sul de Roma.Tácito narra que o imperador retornou apenas quando o fogo ameaçou sua casa e o palácio. Ele também agiu no sentido de ajudar a população: permitiu que a população desabrigada se acolhesse no Campo de Marte e nos jardins de Agripa, que era então de sua propriedade. Construiu edifícios e mandou buscar utensílios domésticos em outros municípios, e até baixou o preço do trigo. Essa reação do imperador não evitou que ele próprio fosse apontado como incendiário, pois um rumor se espalhou, dizendo que, enquanto o fogo consumia a cidade, ele tocava lira.Num segundo momento, o fogo reapareceu na propriedade de Ofônio Tigelino, prefeito do Pretório – comandante da guarda pretoriana, responsável pela segurança do imperador e sua família – e principal conselheiro de Nero. Este fato induziu Tácito a supor que esse incêndio foi proposital, e praticado para permitir que Nero construísse o majestoso palácio no centro de Roma. Porém, também é provável que as coortes de vigília tenham conscientemente ateado fogo em determinadas partes da cidade para queimar o que restava de material combustível. Essa alternativa não deve ser descartada. Ainda mais porque Tigelino possivelmente estava à frente das operações de demolição para cercar o fogo. As coortes de vigília eram chefiadas por um praefectus vigilum, o equivalente a um chefe de polícia, mas tal cargo estava vago à época (seu titular, Aneu Sereno, morrera em 62 e não há registro de seu sucessor imediato), o que complicou a logística de combate ao fogo. Tigelino, que estivera à frente dessas coortes antes de se tornar prefeito do Pretório, assumiu a liderança.Essas suposições revelam que os rumores sobre a intenção incendiária do monarca poderiam ter se originado pelo envolvimento de seu principal homem de confiança, que se serviu de guardas pretorianos e outros funcionários imperiais para controlar o incêndio. O ressentimento daqueles que perderam suas casas e bens certamente levou-os a imputarem ao imperador a responsabilidade, esperando com isto uma compensação.Nero rebateu os rumores de seu envolvimento lançando a culpa nos cristãos, cuja comunidade em Roma começava a ganhar expressão. De acordo com Tácito, alguns cristãos foram presos e torturados, outros lançados às feras e alguns queimados como tochas em espetáculos públicos. Este último castigo, aliás, era reservado justamente a incendiários. Embora tal perseguição tenha tido uma curta duração e ficado restrita a Roma, autores cristãos posteriores aceitaram as alegações de Tácito, figurando Nero como o primeiro imperador romano a perseguir os cristãos. A transmissão de uma imagem negativa de Nero se deve, assim, em boa medida, à visão que a Cristandade produziu da história das perseguições.Não é possível saber se Nero foi o principal responsável pelo incêndio de Roma em 64. Mas o estudo mais atento às principais fontes demonstra que, antes de se afirmar verdades inabaláveis, a história precisa refletir melhor sobre como cada época produz sua própria visão do passado.Fábio Duarte Joly é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Libertate opus est: escravidão, manumissão e cidadania à época de Nero (Editora Progressiva, 2010).Saiba mais - BibliografiaMACHADO, Carlos Augusto Ribeiro. Roma e seu Império. São Paulo: Saraiva, 2000.SILVA, Gilvan Ventura e MENDES, Norma Musco (orgs.). Repensando o Império Romano: Perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. Trad. Sady-Garibaldi. São Paulo: Ediouro, s/d.TÁCITO. Anais. Trad. Leopoldo Pereira. São Paulo: Ediouro, s/d.
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