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domingo, 30 de junho de 2013

A Peste: O que Albert Camus e Luis Buñuel diriam sobre a Revolução do Vinagre

Posted: 21 Jun 2013 08:00 PM PDT

Para entender as manifestações sociais e todo o complexo de modificações que elas levam para a população, é necessário um tempo ­de reflexão, que pode ser mais curto ou mais longo, dependendo da proposta de quem pensa e de quem lê. Assim, milhares de pessoas conseguem expressar suas opiniões por meio de textos, vídeos, fotos e podcasts, principalmente no tempo em que as informações circulam num fluxo incessante e imediato.

Mar de gente na Brigadeiro Luiz Antônio, em São paulo (Foto: Guilherme Burgos)
Mar de gente na Brigadeiro Luiz Antônio, em São paulo (Foto: Guilherme Burgos)
A reflexão é imprescindível para o melhor caminhar das manifestações, pois, com ela, a sociedade define para onde quer ir, ou pelo menos para onde não deve ir. Mas, apesar da importância do tema, esse texto não foi escrito para definir o foco das manifestações, mas, sim, mostrar aos leitores o que a literatura pode ensinar com suas histórias escritas.
Alguns meses atrás, usei o exemplo do livro de George Orwell para explicar como 1984 podia ser transportado à nomeação de um pastor racista e preconceituoso para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Agora, como forma de reflexão sobre as forças que movimentam o Brasil nos dias atuais, decidi falar sobre a obra de um escritor existencialista bastante famoso: o argelino Albert Camus*.
E o que Albert Camus (1913-1960), que viveu durante a Primeira Guerra Mundial e presenciou a Segunda, diria sobre essa que está sendo carinhosamente chamada de A Revolução do Vinagre?
Essa pergunta surgiu em minha cabeça durante uma das marchas do Passe Livre – se é que podemos reduzi-la a apenas uma reclamação – em São Paulo, quando constatei que, caminhando ao meu lado, havia uma imensa variedade de pessoas e de comportamentos totalmente diferentes uns dos outros. Comigo, caminhavam playboys e patricinhas, punks e metaleiros, góticos e engravatados, médicos e advogados. Enfim, vi muita gente que, se não fosse a insatisfação coletiva, nunca topariam dividir o mesmo espaço entre si com civilidade e respeito.
Foi então que me lembrei de um livro do Albert Camus que gosto muito e que se encaixa perfeitamente no contexto brasileiro hoje. O dito cujo seria: A peste.
No livro, o escritor argelino narra a história de uma cidade que vive calma e ordeiramente seu cotidiano sem novidades, mas que, aos poucos, vai sendo infectada por uma peste. Os primeiros a serem atingidos são animais menores como ratos, gatos e cachorros de rua, mas, conforme vai se proliferando, passa também para os humanos. Com isso, instaura-se um clima de desespero na sociedade e nada mais resta ao bloco maior, que pode ser o estado ou o país, do que isolar a cidade para que resolva sua peste (problema) ou morra sem prejudicar quem estiver fora do isolamento.
É então que todos os indivíduos componentes daquela cidade se veem condenados a viver no mesmo barco podre em que a doença e a morte imperam. A riqueza e a pobreza, que antes separavam as classes sociais, agora já não servem para nada, porque a pestilência não tem preferência na escolha das vítimas.
Camus-La-Peste-Poche-1
Peço aos meus queridos leitores licença para fazer uma breve interrupção. Prometo que ela será pertinente e que enriquecerá a experiência de catarse literária implementada nessa postagem. O hiato consiste em citar outra obra de arte, dessa vez cinematográfica, feita por um de meios diretores favoritos. Luis Buñuel**, um espanhol muito amigo de Salvador Dalí, fez um filme que, para mim, traça um retrato parecido com o de Camus.
Em O anjo exterminador, ele mostra um jantar tipicamente aristocrata, no qual os ricos personagens se veem, sem nenhuma explicação, presos por uma barreira invisível e imaginária. Com o passar dos dias, as pessoas vão se despindo de suas máscaras e mostram a quem assiste que, apesar dos requintados artigos que revestem suas vidas, eles são humanos e, consequentemente, fedem, defecam, urinam e podem ser tão podres, segundo seus próprios critérios, quanto aqueles para quem apontam e com quem não querem se misturar, ou seja, as camadas pobres da sociedade.
Feito o adendo, retomo os escritos de Camus.
Em A Peste, Camus ultrapassa os limites imaginários da sala de jantar de O anjo exterminador e mostra como seria uma cidade condenada a viver com uma pestilência que atinge a todos, sem distinção. Nesse cenário, o desespero e a dor unem personagens bem diferentes entre si e fica visível a intenção do autor em inverter o sistema que configura o animalesco humano quando em estado de necessidade. Ele afirma que, na necessidade, pessoas que nunca conseguiriam conviver próximas se unem em busca do mesmo ideal.
E foi a partir disso que recebi uma mensagem enviada por Camus diretamente do mundo dos espíritos – tudo bem, ele era ateu, mas acho que não se importaria com essa licença poética – e  visualizei a analogia com a Revolução do Vinagre.
Assim como em A peste, também vivemos em um estado adoentado e moribundo, que precisa urgentemente de remédios para se curar. A corrupção que suga as energias do Brasil deixa sua população triste e revoltada, mesmo que alguns acreditem ter havido melhoras socioeconômicas significativas nos últimos anos. Talvez essas tão aclamadas melhoras tenham apenas estimulado a vontade do povo de mais. Ou a tristeza esteja no sentimento de que poderia ser muito melhor se não houvesse tanto desperdício de dinheiro público com eventos internacionais supervalorizados financeiramente.
As reclamações são diversas e, dependendo de quem as manifesta, podem ter interesses específicos bem divergentes. Embora alguns analistas políticos ainda insistam em não entender, todos sabem que essa revolta não foi apenas pelos vinte centavos, pela revogação da PEC 37, pela saída do Renan Calheiros ou pela causa gay.
Ela é muito maior.
E o povo deve ter muito cuidado com o caminho para o qual ela pode levar o país. Já escutei alguns pedindo a saída da presidenta Dilma Rousseff. Outros chamando o Geraldo Alckmin de fascista. Quem entende pelo menos um pouquinho de política partidária, sabe que os dois vêm de bandeiras políticas adversárias.
Então, por que manifestantes que gritam por motivos contrários estão caminhando juntos?
"O triunfo da morte", do pintor belga Peter Breugel
“O triunfo da morte”, do pintor belga Peter Breugel
Camus responderia que a podridão fede para todos e a peste corrói a sociedade independente de onde você estiver. Até os mais ricos já estão cansados de viver isolados em seus condomínios de luxo ou de frequentar restaurantes caros com risco de serem assaltados. Então, para curar a coletividade da doença, é necessário haver união, do mesmo jeito que vi andando juntos o advogado engravatado e o punk com cabelo moicano. Os dois têm as mesmas revoltas e sofrem as mesmas consequências de um estado corrupto e virulento.
É claro que as soluções de cada um serão diferentes quando chegar o momento de mudança, mas, enquanto isso não ocorrer, eles continuarão se encontrando nas marchas pelo país afora e poderão discutir suas ideias, e, talvez, reunir suas opiniões em denominadores cada vez mais comuns. Ou não…
Segundo o próprio Camus, a euforia da cidade ao ver-se livre da peste apenas escondia o fato de que novos focos de doença – ou insatisfação – ressurgiriam, mais cedo do que imaginavam. Assim, concluía que os problemas da sociedade não se resolvem com tanta facilidade e o maior erro é acreditar que tudo fica perfeito ao se destruir um foco, quando, na verdade, o que se faz é somente substituir uma peste por outra.
O perigo reside justamente nesse ponto, num reducionismo ideológico que, na história recente da humanidade, resultou inúmeras vezes em regimes totalitários muito prejudiciais para a livre discussão de ideias, elemento tão importante para a boa convivência entre os indivíduos.
Para me despedir, deixo com vocês as últimas palavras escritas por Camus no livro A peste:
“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para a desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
*Albert Camus (1913-1960) foi um escritor e dramaturgo francês, nascido na Argélia. Militante da Resistência Francesa, construiu suas obras a partir de discussões morais e existencialista sobre o mundo destruído e miserável do pós-guerra, principalmente em seu continente natal, África. Recebeu o Prêmio Nobel em 1957
**Luis Buñuel (1900-1983) foi um diretor e roteirista espanhol, nacionalizado mexicano. Junto com seu amigo Salvador Dalí, influenciou sobremaneira a estética surrealista de sua época. 

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