“A aura e o sujeito em Waltercio Caldas” – Tania Riveraby Eduardo Coelho |
Extraído do blog da Cosac & Naify:
O texto a seguir é um trecho extraído do ensaio “A aura e o sujeito em Waltercio Caldas e Cildo Meireles”, integrante do volume O avesso do imaginário, de Tania Rivera.
Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez (1996), Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da história da arte As meninas
(1656), apresentando, em pequeno quadro a óleo, apenas a sala do
palácio que abriga a cena da corte. O quadro não tem, é claro, a
intenção de fazer-se passar pelo original – bem maior do que ele,
inclusive –, mas se afirma como reprodução assumida ou, antes, mero
lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da estranheza de
sua “manipulação”. Ele coloca a questão do que é um quadro, um grande
quadro, uma obra-prima como As meninas. Se não consiste nas personagens e no arranjo cênico entre elas, residirá ele em uma certa composição de luz? Uma arquitetura?
Para
completar, uma placa de vidro semiopaca interpõe-se entre o pequeno
quadro e nosso olhar, tornando-o embaçado, um tanto desfocado. Como se
tivéssemos fechado um pouco os olhos, para ver melhor (ou pior) – ou
seja, para ver nele o que ali não está. Curiosamente, algo dessa
obra-prima então se apresenta, se transmite, apesar de toda a limitação
em sua reprodução. Ou melhor, algo traz de volta a aura do grande quadro
do pintor espanhol, graças, justamente, ao fato de sua reprodução
assumir-se como limitada e manipulada, além de um pouco borrada.
A aura está fora do quadro.
Aura e o instante
A
aura não é simplesmente, para Walter Benjamin, a tradição, a
autenticidade assinalando em uma obra seu pertencimento histórico. Ela
marca “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em
que ela se encontra”. Esse aqui e agora não é mais, obviamente, aquele
do ritual, cujos resquícios ainda dariam à obra um caráter mágico no
qual o valor de existência conta mais do que de exposição. Ele tampouco é
aquele da exposição de As meninas no Museu do Prado, no lugar
onde ela se encontra, em sala adequada à sua grandeza. Esse “aqui e
agora” da aura designa um momento preciso e, no entanto, imprevisível: o
do olhar. Ele se demarca da contemplação prevista institucionalmente,
indicando que a experiência estática não se restringe aos lugares que a
cultura lhe assinala. No campo do olhar, a encenação se assume em uma
autocrítica: não se trata mais de quadro, mas de ganhar o espaço, de
tornar-se arquitetura (a arte por excelência, a única que sempre
existiu, como nota o filósofo).
O
olhar dissemina-se no mundo, enquanto a contemplação estava confinada a
lugares: a igreja, o museu. E no mundo, o olhar é móvel, incerto.
As
formulações benjaminianas em torno da aura, como afirma o início do
célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “põem
de lado numerosos conceitos tradicionais – como criatividade e gênio,
validade eterna e estilo, forma e conteúdo”, que poderiam, segundo ele,
ser utilizados com fins “fascistas”. Os conceitos concebidos pelo
filósofo, em contraponto, “podem ser utilizados para a formulação de
exigências revolucionárias na política artística”, porque são
dialéticos. Da arte, pode-se então pretender retirar uma reflexão que vá
além dela e além do princípio, reacionário segundo Benjamin, da “arte
pela arte”, para atingir elaborações sobre o homem e a sociedade.
Nesse
sentido ampliado, o estético é sempre político, e é a aura – em sua
crítica, ou na medida em que ela é pensada já em crise, só é
identificada durante seu ocaso – que permite tal articulação
fundamental. Mas devemos ir mais devagar, e voltar à própria definição
desse conceito por Benjamin.
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.
A
reprodutibilidade, expandida e bem-acabada graças à invenção da
fotografia e do cinema, põe em declínio a aura como “existência única” e
garantia de autenticidade da obra de arte. Isso é fato e constitui a
leitura mais disseminada a respeito da aura, sublinhando um aspecto
fundamental a toda produção artística do século XX até os dias atuais.
Mas isso não é tudo. A sofisticada dialética benjaminiana aponta como
fundamental à aura, como vemos no trecho acima, um caráter de
“aparição”, implicando uma temporalidade própria: à aparição deve-se
suceder um desaparecimento. Ou talvez haja um desaparecimento anterior à
aparição, e esta seja sempre, mais rigorosamente falando, uma
reaparição (apesar de única, a cada vez). A cadeia de montanhas que se
observa em repouso, numa tarde de verão, já estava, sem dúvida, à nossa
vista. Mas é de súbito que ela aparece, em sua qualidade aurática, ao
nosso olhar. O instante em que isso se dá desdobra-se em um passado. Por
mais perto que esteja, a coisa olhada faz-se distante, porque é perdida
no momento mesmo de sua aparição.
É
essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma
obra de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer
dela uma ausência. A reprodução serve, mais do que ao propósito de
“re-apresentar” a obra, para que ela seja evocada como perda. Reproduzir
é fazer perder e, no entanto, no instante dessa subtração – ou um
instante antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda algo pode
apresentar-se ao olhar; apenas à distância uma mera visão pode tornar-se
aparição única. Essa é a temporalidade do olhar: só retroativamente,
após o desaparecimento, uma vez estabelecida uma certa distância,
acontece o instante aurático.
*
Tania Rivera (Brasília, 1969) é doutora em psicologia pela Université
Catholique de Louvain e integra o Departamento de Arte e o PPG em
Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense
(UFF).
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