“Arraes no Palácio do Povo” – Everardo Norõesby Eduardo Coelho |
Belo texto memorialístico de Everardo Norões publicado no Jornal do Commercio de 9 de setembro de 2005 [via Retábulo de Jerônimo Bosch]:
O
Palais du Peuple – Palácio do Povo – ocupa um quarteirão da cidade de
Argel e faz esquina com a Avenida Franklin Roosevelt, uma das artérias
mais movimentadas da cidade. O palácio, como quase todo o casario ao
redor, é caiado de branco, com portas e janelas pintadas de azul. Ali,
no número 21, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, banido pelo
regime militar, inaugurou, em 1965, um exílio de 15 anos. O destino
assim o quis. Conforme dizem os árabes: Maktub, estava escrito.
Tendo recusado submeter-se à vontade dos militares e jurado honrar o
cargo que o povo pernambucano lhe outorgara, aquele palácio certamente
surgira a Arraes como uma espécie de metáfora. Os aposentos anexos do
Palácio do Povo, retomado dos franceses após sete anos de uma das
guerras coloniais mais violentas, serviram para abrigar, por um dos
acasos da História, aquele que, durante toda a sua vida, centrara o seu
pensamento sobre o destino de um outro povo, o povo brasileiro.
A Avenida
Franklin Roosevelt, onde residiu Arraes, desemboca numa das principais
ruas do centro da cidade, a Didouche Mourad, nome de um grande herói e
mártir, lugar de muitos embates durante a famosa Batalha de Argel.
Muitas vezes descemos juntos aquela rua ladeirosa, em busca de notícias,
chegadas sempre com atraso à caixa postal da Grande Poste – o prédio de
arquitetura mourisca do correio central. As comunicações eram falhas, a
vigilância policial no Brasil era cerrada, não convinha usar endereços
residenciais. Caixas postais e brasileiros que chegavam à Europa eram as
fontes de informação mais seguras.
No caminho
de volta sentávamos no Café Bardo, vizinho ao museu de etnologia do
mesmo nome, para tomar um café, falar de política, de trabalho, da
situação internacional, de leituras. Arraes tinha sempre uma história
para cada circunstância, uma ilustração para cada caso. Depois da
conversa, seguíamos para seu escritório, simples: uma mesa de madeira e
estantes improvisadas, que abrigavam documentos, livros e jornais os
mais diversos, nas mais diferentes línguas. Suas anotações, numa
caligrafia tortuosa e graúda, concatenavam observações que iriam
desembocar, mais tarde, no livro publicado pela famosa editora
parisiense François Maspero, Brésil, le pouvoir et le peuple, proibido no Brasil.
Eu gostava
de olhar suas mãos quando ele escrevia. Mãos delicadas que contrastavam
com sua maneira quase rude; mãos de gestos raros, que acompanhavam um
falar quase silêncio, de cortes ríspidos, induzindo o interlocutor a
perseguir a linha de pensamento do estrategista nato. O raciocínio,
instintivamente dialético, nem sempre era fácil de ser alcançado por
pessoas habituadas às categorias da lógica formal.
Quando
estava exposto no Palácio das Princesas, morto, pude mais uma vez olhar
suas mãos, finalmente cruzadas. E, à vista delas, chegaram-me lembranças
que a História nunca irá contar, de um exilado solitário e firme,
apesar de abandonado por muitos, até mesmo por alguns que depois
voltaram a cercá-lo no mesmo palácio que o acolheu pela última vez. Em
Argel, sonhava com um Brasil bem diferente daquele que iria encontrar no
seu retorno. Nas vezes em que o futuro lhe inquietou, certamente foi
por ter pressentido que a nossa tragédia coletiva poderia resvalar para
uma quase comédia...
O carisma é
um atributo especial de um indivíduo e Arraes teve esse dom, percebido
não apenas por nós, pernambucanos e brasileiros. No exílio ele era
também observado assim, e o povo que o acolheu o considerava como um dos
seus: um frére, um irmão. Fato singular, o nome Arrais, em árabe, significa cabeça, chefe, senhor do barco.
Os
argelinos que o conheceram, quando cruzarem agora aquela esquina do
Palácio do Povo, lembrar-se-ão dele e hão de murmurar, como fazem ao
pensar num irmão defunto: “Deus é o mais alto, o Misericordioso e o
Misericordiador”.
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