Porto Alegre, 24 de Abril de 2013
Velhas entrevistas: Touraine errou sobre Lula?
ALAIN TOURAINE
“Fernando Henrique será o homem do Brasil moderno”
Sociólogo
brilhante, o francês Alain Touraine, nascido em 1925, um dos grandes
mestres das ciências sociais contemporâneas, especialista em América
Latina, analista das metamorfoses do “ator social”, conhece o presidente
eleito do Brasil desde 1960. Protetor de Fernando Henrique Cardoso,
convidou-o a lecionar em Nanterre, em 1968.
Estudioso dos movimentos sociais, autor de livros importantes como Sociologia da Ação (1965), Produção da Sociedade (1973), As Sociedades Dependentes (1976), Crítica da Modernidade (1992) e O Que é a Democracia? (1993), Alain Touraine, nesta entrevista, reflete sobre Rumo a um Novo Projeto para o Brasil? Impasses e Perspectivas do governo Cardoso, explica por que o PT pertence ao passado, Fernando Henrique ao futuro e como o presidente FHC poderá mudar o Brasil.
Quem é Fernando Henrique Cardoso para o senhor?
Alain Touraine – Fernando
Henrique Cardoso representa para mim depois de muito tempo duas coisas:
o melhor sociólogo latino-americano, reconhecido como tal por todo
mundo; e um amigo muito querido. Na América Latina, sejamos francos,
pode e deve-se discutir bastante para saber quem é o número dois da
sociologia. Quanto ao primeiro, não há necessidade de debate.
O senhor convidou Fernando Henrique para lecionar em Nanterres em 1968. Como começou essa relação?
Alain Touraine – Conheci
Cardoso e Ruth em 1960, em São Paulo. Eu havia sido enviado ao Brasil,
como antes a Santiago do Chile, para preparar a criação de um centro de
pesquisas sociológicas. Existiam duas cadeiras de sociologia na USP, uma
dirigida por Fernando de Azevedo, responsável pela minha presença lá, e
outra por Florestan Fernandes. Ao fim de um mês, quando perguntaram a
minha opinião a respeito da direção do referido centro, eu, que tinha
sido chamado pelo grupo da Cadeira 2, de Azevedo, indiquei para a função
Fernando Henrique Cardoso, o assistante de Fernandes na Cadeira 1. Em
conseqüência, passei a ter relações difíceis com Azevedo, Maria Isaura
Pereira de Queirós e outros, mas me tornei amigo de Florestan, de
Fernando Henrique, de Ianni… A partir daí, revi Cardoso com frequência.
No Chile, onde ele se exilou, travamos contato, pois fui casado com uma
chilena. Na Cepal, Cardoso trabalhou com Enzo Faletto, que fora meu
assistente alguns anos antes. Estávamos, portanto, no mesmo meio.
Convidei-o
a passar um ano em Paris, ensinando em Nanterre, onde eu era o diretor
do departamento de Sociologia. Em seguida, ele foi chamado duas vezes
para dar conferências na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais
(EHESS). Fernando Henrique foi também convidado no quadro da Conferência
Marc Bloch, uma leitura solene, anual, confiada a um grande sociólogo
estrangeiro. No grande anfiteatro da Sorbonne, em estilo grandioso e
nobre, ele se impôs como um mestre.
Na
época em que morou em Paris, Fernando Henrique e o senhor tiveram
oportunidade para, de fato, aprofundar a relação intelectual e de
amizade?
Alain Touraine – Sem
dúvida. Frequentávamos um a casa do outro. A minha mulher, que morreu
há alguns anos, sendo latino-americana, favoreceu a ligação com o casal
Cardoso. No dia seguinte ao de sua eleição para a presidência do Brasil,
Fernando Henrique telefonou para mim e deixou uma mensagem na
secretária eletrônica, em francês, comentando a sua alegria. Disse que
pensava em mim e na minha mulher. Fiquei muito sensibilizado com a
atenção e a lembrança. Gentil e humano.
O
senhor publicou vários artigos para saudar a escolha de Fernando
Henrique como o melhor que poderia acontecer para o Brasil. Quais são os
seus argumentos?
Alain Touraine – Escrevi
vários artigos desde o início da campanha, quando Fernando Henrique
tinha apenas 14% das intenções de voto. Publiquei, por exemplo, uma
análise no diário espanhol El Pais. Normal. Fernando Henrique significa no meu entender uma oportunidade histórica para o Brasil. Não
quero exagerar, embora eu me divirta ao constatar que os planos feitos
pelos economistas fracassaram, já o do sociólogo deu certo.
As
dimensões política e social da ação econômica são frequentemente
incompreendidas pelos economistas puros. No caso do Brasil, o essencial é
o reforço da capacidade de decisão do Estado diante dos grupos de
pressão perfeitamente respeitáveis de classe média. Os detalhes do plano
econômico podem ser tratados por especialistas. A experiência dos
países latino-americanos, entretanto, mostra-nos que as condições
políticas são mais importantes. Não haveria plano Cavallo sem Menem.
Claro, a situação argentina é diferente da brasileira, mas o político
comanda. O mesmo vale para o México, onde a grande ideia foi liberar De
la Madrid e Salinas do PRI. A dificuldade não é técnica, mas de
capacidade de decisão. Uma parte do sucesso de Fernando Henrique Cardoso
vem do fato que ele convenceu Itamar Franco a ficar firme apesar das
pressões, por exemplo, de setores do funcionalismo público. Vê-se a
sensibilidade do sociólogo no interesse pela análise global.
Como
o senhor explica o fato de que os intelectuais brasileiros em geral, em
especial os cientistas sociais, não compartilham o seu entusiasmo? O
senhor acredita que Fernando Henrique tem um verdadeiro projeto para o
Brasil e que plano econômico sobreviverá após a vitória eleitoral?
Alain Touraine – Os
intelectuais votaram, claro, por Lula, pois a intelectualidade
latino-americana continua majoritariamente agarrada a um modelo
nacional-popular ou populista mais ou menos impregnado de marxismo e com
certeza de um ideal distributivista populista. As oposições são mais
claras na Argentina, onde o novo governo não está acima de todas as
suspeitas; eu tomei a defesa de Menem e de Cavallo. Alcançou-se uma
solução na medida em que Alfonsin abraçou Menem. A inquietude permanece,
mas é possível constatar que o país passou de uma situação de
queda-livre, de catástrofe, ao inverso, graças a Menem. Os intelectuais
argentinos eram todos contra; hoje, estão todos reduzidos ao silêncio.
Não têm o que dizer. Os intelectuais mexicanos votaram por Cárdenas,
esperando, em verdade, que ele não passasse, uma vez que no passado
fizeram-lhe oposição.
No
Brasil, em todo caso, penso que os petistas moderados estarão dispostos
a confiar em Cardoso. Já os xiitas preferirão combatê-lo. Quem
imaginou, por causa da aliança com o PFL, que Fernando Henrique se
tornara um candidato de centro-direita e que Lula representava a
esquerda, mergulhou na contradição. Não era essa a questão. O importante
era escolher entre a negação ou a conservação de um modelo
distributivista estatal favorável às classes médias, responsável pela
inflação, sustentado pela CUT e pelo PT. Lula, o homem do
Brasil moderno, dos sindicatos modernos, de 1977 a 1979, no ABC
paulista, tornou-se progressivamente o homem da defesa dos setores
beneficiados pelo distributivismo do Estado: funcionários públicos e
outros. Some-se a isso o lado populista e o comunismo esclerosado e
tem-se um conjunto que não cria nenhuma condição de governabilidade.
Conheço muita gente que votou Lula e está contente com a vitória de Fernando Henrique. Weffort é um exemplo disso.
E
o projeto? O senhor imagina que os franceses votariam por Jacques
Delors, um social-democrata respeitável, se ele se ligasse com Charles
Pasqua, um representante da direita truculenta?
Alain Touraine – A
vitória de Cardoso era indispensável. Não apenas ele tem um projeto,
mas se trata do único que podia ter um. Ninguém mais possuía um projeto.
Por quê? Simples: o Brasil precisa aceitar o jogo do mercado, como todo
mundo. Lula representava uma tentativa desesperada de manter o
nacionalismo. De outra parte, a sociedade brasileira é o campeã mundial
das desigualdades sociais e por isso mesmo não existe alternativa para o
Brasil que não passe por uma política liberal e social ao mesmo tempo. A
extrema-direita, o liberalismo selvagem, não conseguiu um candidato com
chances porque de um Maluf a um Vargas Llosa, em se tomando a esfera
latino-americana, seria a revolução. Com a esquerda representada por
Lula há um programa social mas não econômico e disso resulta o fracasso.
O
Brasil, quanto ao essencial, precisa conhecer uma profunda
liberalização da economia. A eleição de Fernando Henrique significa que o
último grande país que recusava as regras do mercado decidiu curvar-se
diante do razoável e do necessário. O fundamental, a partir daí, é a
aproximação do modelo chileno: liberalização e utilização dos recursos
do Estado para diminuir as desigualdades sociais. Quando Aylwin assumiu,
mais de 40% dos chilenos encontravam-se em situação de miséria
absoluta. Hoje, o índice caiu para 32%. É muito ainda. O balanço social
do governo Aylwin é limitado, mas positivo. No Brasil, em contrapartida,
o balanço é negativo por causa da inflação, que é uma espécie de
imposto sobre os pobres: 40% ao mês nas costas dos menos favorecidos é
enorme.
Talvez
Fernando Henrique tenha pago um preço excessivo ao PFL. Não havia outra
solução. Era importante estabelecer uma aliança com os liberais. O
presidente poderá, porém, contar com a sua capacidade de articulação e
com ao apoio de setores progressistas em função da legimitidade que
retira de uma eleição brilhante. Eis uma grande diferença em relação a
um homem como Charles Pasqua na França. O PFL não tem uma visão da
totalidade e não poderá ser hegemônico. Trata-se de uma oligarquia
regional que carrega o perigo das políticas locais, sempre abertas à
corrupção e ao clientelismo. Fernando Henrique é o único a poder
sustentar uma política nacional. O PFL será menos forte do que crê.
Mesmo a Fiesp tem uma visão nacional. Não o PFL.
Fernando
Henrique lembra o Partido Republicano dos Estados Unidos no início
deste século, que representava os industriais e os trabalhadores contra
os latifundiários apoiados pelo Estado. Cardoso será o homem do Brasil
moderno.
O PFL, portanto, não impedirá Fernando Henrique Cardoso de governar e de fazer uma reforma social no Brasil?
Alain Touraine – O
PFL custará caro por ter um peso considerável. Fernando Henrique
Cardoso precisará obter o apoio de uma fração dos parlamentares do PMDB
para implementar as suas reformas. O PSDB sozinho pouco poderá fazer.
O
senhor acredita que o PMDB, vítima de suas contradições e hesitações,
terá finalmente vontade política para ajudar em reformas substanciais?
Alain Touraine – Certamente.
A única vez em que discordei de Fernando Henrique Cardoso foi quando
ele se inclinou em favor de uma constituição parlamentarista, pois para
mim o sistema presidencialista é superior. O presidente, com a
legimitidade do voto, um projeto pertinente e a capacidade de
articulação que caracteriza Fernando Henrique poderá construir a
situação necessária à mudança.
O que deverá fazer, em termos concretos, Fernando Henrique para integrar os milhões de excluídos da sociedade brasileira?
Alain Touraine – Deve-se
começar pelo bom senso. A economia brasileira comporta-se bem, com uma
taxa de crescimento razoável e projeções muito favoráveis, além da
existência de reservas cambiais fortes. Tudo vai bem do ponto de vista
da produção. O Estado deverá criar infraestrutura social (moradia,
escolas, hospitais…) através do aumento dos impostos, como todo mundo
faz, basta ver o exemplo argentino. Os chilenos passaram por uma
elevação de impostos da ordem de 2% dos Produto Nacional.
Que camadas sociais deverão ser atingidas pelo crescimento dos impostos?
Alain Touraine – Não
apenas as grandes fortunas deverão ser oneradas. Precisamos acabar com
esse mito. Os impostos devem atingir os patrimônios médios. Apenas os
pobres devem ficar fora disso. Para que uma parte da população excluída
seja integrada é preciso que os mais afortunados aceitem uma taxação
mais elevada. Assim se poderá fazer da Baixada Fluminense um lugar
normal. O Governo terá de investir em casas populares, ensino básico – o
Brasil possui ainda um indíce de analfabetismo inaceitável – e saúde.
Significa pensar em hospitais públicos eficientes, em formação e
pagamento de professores competentes e em previdência social séria. O
Chile avançou no que se refere às residências populares, mas nada fez na
área do ensino e da saúde.
O
Estado destruído por Collor terá de ser reconstruído. O Brasil conta
com muita gente competente e poderá obter êxito. Será decisivo o papel
de um ministério do planejamento voltado à análise técnica e social.
De que maneira a inflação poderia beneficiar a classe média?
Alain Touraine – Eu digo que a classe média acabou protegida, enquanto os pobres foram
esmagados. Apesar dos percalços, os indivíduos de classe média
conseguiram, através de operações bancárias e outros mecanismos, escapar
do massacre inflacionário. Os ricos, claro, beneficiaram-se
politicamente. Os baixos salários dos pobres, empregados no consumo
imediato, nunca permitiram o jogo bancário ao qual recorreu à classe
média.
Passada o calor da eleição, o senhor compartilha a ideia de Fernando Henrique de que o PT representa a esquerda do passado?
Alain Touraine – Não
estou seguro que se trata da esquerda, mas certamente é algo do
passado. Pego o caso francês: os sindicatos representam a esquerda na
França? Constato que eles defendem grupos e pessoas cujos rendimentos
estão acima da média nacional e que são os menos expostos ao desemprego.
Existe uma representação excessiva do setor público, dos funcionários,
nos sindicatos franceses assim como nas fileiras do PT no Brasil. O
Estado precisa encontrar o equilíbrio para aplicar recursos na ajuda dos
mais pobres, pois isso interessa também ao desenvolvimento do mercado
interno. A economia mundial é regulada pelo mercado. China, Cuba,
Vietnã, Suécia reconhecem isso. Se o Brasil quiser fazer de outra
maneira será pior para ele. Por haver recusado o mercado antes é que o
Brasil se encontra em estado catastrófico nos últimos cinco anos.
A
sua análise mescla a importância da recomposição do Estado com a
valorização da economia de mercado. Os parceiros políticos de Fernando
Henrique estarão abertos a essa síntese?
Alain Touraine – A
social-democracia europeia, basta ver os casos da Suécia e da Alemanha,
nada mais fez nos últimos 50 anos do que liberalizar e
internacionalizar a economia. Apostou-se na exportação e, de outra
parte, através do Estado, dos sindicatos e de associações, construiu-se
uma sociedade integrada e com distâncias sociais menores. O Brasil
precisa de uma economia de mercado e de uma redução das desigualdades
sociais. Não há contradição nisso.
Fernando Henrique foi eleito em função de seu projeto ou do plano econômico que seduziu a população?
Alain Touraine – É evidente que o plano econômico foi decisivo. Qual era o quadro eleitoral? Cardoso fez uma aliança com a
direita. No plano dos sentimentos não é nada exaltante. Mas é razoável
economicamente. Lula falava em nome do povo, dos pobres e assim por
diante; é nobre e generoso. Lula deveria ganhar se o voto do coração
predominasse. A diferença é que Fernando Henrique pode fazer o que disse
e Lula ficaria no terreno das promessas. Poderíamos discutir a quem
caberia o prêmio de moral, de eloquência ou de sociologia. Quanto à
escolha do presidente, contudo, não há o que debater: Fernando Henrique
representa o exeqüível.
A intelectualidade brasileira que apoiou o PT faz parte, portanto, do passado?
Alain Touraine – É
complicado. A intelectualidade brasileira é pluralista, embora existam
muitos aspectos do passado nela. Os intelectuais brasileiros haviam
escolhido uma visão moderna em oposição ao arcaísmo da Venezuela e mesmo
dos argentinos. Os chilenos e os brasileiros tornaram-se nos últimos
vinte anos os defensores de ideias novas. Resta, entretanto, um aspecto
sentimental pró-Lula, um homem que eu também admiro, mesmo lamentando a
sua deriva distributivista. Espero que o presidente Fernando Henrique
siga as lições do professor Fernando Henrique. Não há razão para
esquecer as ideias do sociólogo, pois o Brasil precisa escapar ao
liberalismo exagerado e ao nacional-populismo.
Fernando Henrique chegou a dizer que era para esquecer tudo o que havia escrito?
Alain Touraine – Não
devemos fazê-lo. Ele mesmo não o faz. A verdade é que o seu lugar
mudou. O sociólogo é hoje um homem de decisão. Mas as idéias do
intelectual estão na base de sua ascensão política.
O senhor não teme ser chamado de reacionário no Brasil?
Alain Touraine – Considerar
o tipo de ideia que defendo como reacionarismo é um erro trágico.
Pode-se interpretar a alma caridosa e falar em distribuição. A América
Latina sai de um período distributivista fracassado. Precisa-se, hoje,
aumentar a capacidade de intervenção do Estado e agir a partir de uma
sociedade mais dinâmica. O subjetivismo da esquerda tradicional, mais
cristã do que esquerda, é moralista. Mas essa gente poderá desempenhar
um papel importante na vida política brasileira durante o governo de
Cardoso. A luta contra a pobreza supõe a mobilização dos que votaram em
Lula.
(entrevista republicada em meu livro “Visões de uma certa Europa”, Edipucrs).
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