FHC: “Nós, a elite, temos tendência à arrogância.”by bloglimpinhoecheiroso |
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Fernando
Henrique Cardoso entra na ampla sala onde costuma receber a imprensa e
convidados na Fundação iFHC, olha para o repórter e o fotógrafo e
pergunta: “Não era uma moça que vinha?”. Era. Mas ela precisou apurar
outra matéria, em Brasília, e, infelizmente, o presidente terá de se
contentar com um repórter do sexo masculino. Ele parece resignado. FHC
acabou de abrir e fechar uma palestra cujo tema era “Brasil e América
Latina: que liderança é possível?” e agora come uns pãezinhos do coffee
break que a secretária guardou para ele.
Localizada
no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, a fundação foi inaugurada,
em 2004, com robustas contribuições de empresários paulistas. Nasceu
como instituto, para abrigar o acervo de documentos privados do
presidente e também promover palestras e debates “sobre a democracia e o
desenvolvimento”. Em 2010, com o objetivo de “fortalecê-lo como
instituição perene”, transformaram o instituto em fundação. Ali se
discutem temas tão diversos como “Retratos da Primavera Árabe, O
Encontro de Joaquim Nabuco com a Política: as desventuras do liberalismo
e India grows at night when government sleeps”. Em oito anos de
existência, a entidade promoveu mais de 200 debates. No dia em que Poder
esteve lá, os palestrantes eram o embaixador Celso Lafer, o
ex-presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, e o porta-voz do ex-presidente
mexicano Vicente Fox, o sociólogo Rubén Aguilar. Na abertura do evento,
assistido por cerca de 60 pessoas, o coordenador de debates da
fundação, Sérgio Fausto, apresenta o tema.
Nós, a elite
O
encontro é permeado por aquele tom de solenidade que os intelectuais
costumam usar para infundir peso a suas opiniões. Os que estão ali
afirmam que o Brasil “sem dúvida tem dimensão territorial para exercer
liderança na região”; que conta com “preponderância econômica sobre os
vizinhos”, com “indiscutível potencial energético”, com “instituições
cada vez mais fortes”. “Estamos muito mais adiantados na defesa dos
direitos humanos, na democracia”, concluem, orgulhosamente, os
brasileiros. Porém, ressalvam, o Brasil parece “receoso em assumir
posições”, “insiste em certas posturas desnecessárias” e “deveria falar
menos em liderança e passar a exercê-la”. “Nós temos certa tendência à arrogância”, diz FHC. “Quando eu digo nós, quero dizer nós, a elite.”
De
repente, Rubén Aguilar efetua uma espécie de corte epistemológico no
fluxo do debate, levantando questões que colocam em xeque a própria
pertinência do tema. “Por que, afinal, o Brasil está tão preocupado com
liderança?” “Que importância tem em ser a sétima ou a primeira economia
do mundo, se não se dá ao povo condições de viver?” “Como se pode ser
líder de seus vizinhos, quando só se enxerga a si mesmo?” Alguns
intelectuais presentes sorriem amarelo, outros acham graça de verdade.
Depois
do debate, comendo os pãezinhos do coffee break, FHC pondera que
Aguilar é mexicano, por isso trata o assunto com ironia. “Ele diz que o
povo lá não está interessado em liderança, mas quem tem de querer a
liderança não é o povo, é o Estado”, diz. Por outro lado, o
ex-presidente acredita que “a verdadeira liderança não precisa ser
proclamada, ela é exercida”. E, assim sendo, o Brasil não tem de
informar que é líder: “No mundo moderno, não existe imposição, mas
convencimento.”
Intelectual público
Pouco
antes da entrevista, a secretária de FHC aponta o lugar onde o chefe se
senta e convida o repórter a ocupar uma das outras três cadeiras
dispostas em volta de uma mesinha de centro redonda. O presidente posa
para as fotos e, em seguida, responde às perguntas. Diz que, hoje, ele é
“o que os americanos chamam de ‘intelectual público’”. “Transformo
minhas posições e as exponho publicamente. Não fico restrito à
universidade.” Certo. E o que ele sentiu, como intelectual público,
quando soube que Lula teria uma coluna no jornal norte-americano The New York Times? “O NYT
vai distribuir matérias do ex-presidente Lula. Acho bom e normal. Fazem
o mesmo com as colunas que escrevo no Brasil.” Tudo a ver. Pode-se
inferir, então, que Lula também é um “intelectual público”.
Apesar da identificação, Fernando Henrique Cardoso foi duro com Lula em um artigo publicado nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo
com o título “Herança pesada”. Supostamente, o texto era bem
intencionado; pretendia dar um desconto ao governo de Dilma, por conta
dos erros cometidos por Lula. Mas, ao mesmo tempo, colocava os dois no
mesmo equívoco original, o PT. “Comecemos pelo mais óbvio: a crise
moral”, escreveu FHC. “Nem bem completado um ano de governo e lá se
foram oito ministros, sete dos quais por suspeitas de corrupção. […]
Como o antecessor desempenhou papel eleitoral decisivo, seria difícil
recusar seus filiados.” Citou também o “mensalão”, “outra dor de
cabeça”. “De tal desvio de conduta a presidente passou longe e continua
se distanciando, mas seu partido não tem jeito.” O tucano mencionou
ainda como “herança pesada” o déficit da Previdência, a política
energética e o atraso na transposição do rio São Francisco.
Dilma
ficou brava. Ela que, quando FHC completou 80 anos, havia mandado uma
mensagem carinhosa para ele, elogiando “o político habilidoso, o
ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o
presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da
estabilidade econômica”, soltou uma nota oficial ácida. “Não recebi um
país sob intervenção do FMI ou sob ameaça de apagão. Recebi uma economia
sólida, com crescimento robusto, inflação sob controle, investimentos
consistentes em infraestrutura e reservas cambiais recordes. O passado
deve nos servir de contraponto, de lição, de visão crítica, não de
ressentimento.” Com sua expressão mais inocente, Fernando Henrique diz a
Poder: “Eu escrevo um artigo, ela responde com uma nota oficial. Achei estranho”.
Sem noção
Na
opinião de FHC, Dilma parece se sentir “imprensada” por interesses
divergentes. Ele a aconselha a “não entrar no olho do furacão”. “Mesmo
que esse furacão seja a eleição.” O presidente reconhece que a
popularidade dela está em alta, mas acredita que isso é reflexo do que
chama de “linguagem unificada do PT”. Para ele, todo mundo no partido
diz a mesma coisa: ministros, Petrobras, Banco do Brasil etc. “Você pode
ver na tevê, só aparece um lado. O lado dela. O povo só vê isso. Não
quer dizer que na hora da eleição vá julgá-la do jeito como a julga
agora.”
Por
sua vez, o PSDB, partido do qual FHC é cofundador, filiado e presidente
de honra, parece ter dificuldade para achar um lado – qualquer um. No
momento, a impressão é a de que os próprios tucanos não sentem firmeza
na decisão de Aécio Neves de disputar a Presidência da República. “O
Aécio é mineiro, achava que não era a hora. Agora, ele achou que é hora.
Está a toda”, garante Fernando Henrique. O tucano reconhece que o
partido frequentemente deixa de “falar claramente”. “Tem de defender o
que foi feito. Privatização? Todo mundo tem celular. Todo mundo tem
orgulho da Embraer. Você não consegue fazer nada na história se não
tiver noção de como ela foi construída.”
Se
o tucano reconhece traços de “acanhamento” entre os correligionários do
PSDB, particularmente ele garante que sempre foi muito firme em suas
opiniões. É verdade que algumas vieram com certo atraso, como a defesa
da descriminalização da maconha, feita apenas há dois anos no México.
FHC expôs sua posição durante a reunião da Comissão Latino-Americana
sobre Drogas e Democracia, da qual faz parte. A repercussão no Brasil
foi enorme. Ele discorda que só tenha falado sobre o assunto agora
porque é mais fácil para um ex-presidente de 81 anos, sem intenção de
disputar cargo político, dar sua opinião sobre temas espinhosos. “Sempre
disse o que quis. Quando estava na Presidência, criei a Senad,
Secretaria Nacional Antidrogas, com função educativa.” Senad quem? “De
fato, não teve muito destaque na época”, ele reconhece.
Ninguém acredita
Convenhamos
que agora pega até bem, especialmente entre os jovens que frequentam a
fundação, ter um mentor tão prafrentex. FHC responde a eles que nunca
fumou maconha, “mas não adianta, ninguém acredita”. Ele acaba
concordando que, de fato, expõe com muito mais liberdade suas ideias
hoje, do que há 30 anos: “Não tenha dúvida”.
Já
que é assim, a reportagem se sente tentada a repercutir algumas
histórias clássicas sobre ele. É pão-duro? “Sim, sou.” Mas do tipo
pechincheiro? “Não sou uma pessoa de consumo, de gastos.” Esse seu terno
é de marca? “Ganhei o tecido, e mandei fazer.” Algum bem de consumo
durável que o seduza: canetas, óculos, relógios, automóveis? “Não, não.
Carro, eu não sei nem qual a marca. Frequentemente, entro no carro
errado, alguém me avisa.”
Sua
vaidade é intelectual. O presidente gosta de ir ao cinema, ao teatro,
de ler livros. Quando sai, é tratado como astro. Dá autógrafos,
inclusive. A constante massagem no ego provavelmente ajuda a neutralizar
a eventual decadência física. “Nada resolve essa parte.” De qualquer
maneira, é mais fácil para um senhor de 81 anos esquecer uma dorzinha na
articulação quando ele tem a agenda cheia. Na véspera da entrevista,
FHC almoçou com o escritor peruano Mario Vargas Llosa, depois falou para
mil jovens sobre democracia. À noite, jantou com amigos. No dia
seguinte, faria uma palestra em Belo Horizonte. Nesses eventos, ele
gosta de falar, “não de ler”, para quem o assiste. Mas garante que não
sente sono quando um palestrante lê, como o fez, por exemplo, Celso
Lafer.
Salto na biografia
O
celular dele toca, é a namorada, Patrícia Kundrát, 35 anos,
ex-funcionária da fundação. Eles vão se encontrar depois da entrevista. O
presidente diz a ela que liga quando entrar no carro. O tucano não sabe
precisar há quanto tempo namora Patrícia. “Ah, não sei. Uns dois, três
anos.” Gosta de namorar? “Com moderação”, ri. Ele diz que nunca ouviu
falar em um grupo de viúvas moradoras de Higienópolis, bairro onde vive
em São Paulo, que são apaixonadas por ele. “Só em Higienópolis?”, ri de
novo.
Sua
fama de mulherengo pareceu se confirmar quando FHC assumiu um filho
que, descobriu-se depois, não era dele. É razoável imaginar que o
presidente preferiu ser politicamente correto e reconhecer a paternidade
do garoto antes mesmo de saber se era o pai. Mas ele explica que não
foi bem assim: “Eu não sabia anteriormente e decidi não ‘assumir a
paternidade’ – posto que o DNA mostra que não se trata de filho meu –
mas, sim, manter laços afetivos e as custas de sua educação. Isso eu
faço não porque seja ‘politicamente correto’, mas porque é humana e
sentimentalmente o que sinto que devo fazer.”
Um
salto e tanto na biografia do intelectual público. Duas vezes
presidente da República, ministro das Relações Exteriores, da Fazenda e
senador, Fernando Henrique Cardoso revela-se agora um pai adotivo de
tendências humanitárias e sentimentais. Além de tudo, tocante.
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