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quinta-feira, 9 de maio de 2013

o rosto tranquilo da morte


o rosto tranquilo da morte

corda


não gosto da morte, como qualquer pessoa imagino que não goste, mas não talvez pelos mesmos motivos. não gosto da morte porque tudo nela remete a um ritual, a começar pelo ritual civilizado de manter o cadáver a distância e sobretudo oculto. a morte é parada, o que me faz pensar que todo ritual celebra a cessação do movimento. pode ser por isso que os rituais gostem tanto das repetições. a morte é mantida a distância — ou pelo menos o que restou dela, o corpo, o vestígio de que a morte existe e alcançará implacavelmente a todos — porque persiste um medo não mencionado de que a morte é algo contagiosa, tê-la por perto significa correr o risco de contrair mais rapidamente os sintomas que ela prolifera. ou por que outro motivo os amigos e parentes dos agentes funerários pedem que se limpem, que se higienizem, antes de lhes apertar a mão ou antes que entrem em casa depois de uma jornada de trabalho em que lidaram com alguns cadáveres? não gosto da morte porque não gosto de rituais. não gosto de rituais porque, por mais ciente que esteja de que que a vida é composta sobretudo de repetições (lavar cabelo, escovar dentes, mastigar, dormir, defecar, fazer sexo), sinto necessidade de apostar na quantidade de improviso que a vida tem, uma capacidade de fazer o nunca antes tentado e isso acontecerá pela primeira vez. vida é surpresa, enquanto a morte está parada e inevitável, ela sim, a verdadeira todo poderosa. a morte é deus, não a vida. a vida é humana, precária, ávida, intensa. o tédio, quando houver, é treino para a brutalidade acachapante da morte. vida é inauguração. a morte é o único valor realmente democrático, a vida é aristocrática. a começar pela corrida dos espermatozoides e pela seleção ovular rigorosa, com seu orifício altamente seletivo. na morte, a gravidade começa a se manifestar e ao cadáver será dada uma das duas destinações: será encaixotado e enterrado (e freud dirá para “enterrar” o assunto ao se fazer o luto, ou seja, será preciso tirar do alcance dos olhos para não se remoer, mas só depois de se certificar de que o corpo esteve diante dos olhos, para que se tenha certeza de que o assunto pode começar a ser encerrado, arquivado, enterrado) ou será cremado, para que volte logo ao estágio do pó, afinal a mesma destinação do corpo encaixotado, apenas neste último caso o processo se dará mais lentamente. mas atenção: a vida ausente do corpo não significa ausência de vida. o cadáver será atacado por dentro por bactérias de decomposição, muito vivas todas elas e dependentes desta carne morta para perpetuar a própria sobrevivência. quando mortas, as bactérias terão bactérias ainda menores para consumi-las? como é o pós-vida desses seres tão diminutos? o que o humano consome em vida ao ingerir a carne morta de animais será retribuído um dia, quando estiver morto, quando terá as carnes mortas também consumidas. é o ciclo da morte, não da vida. a morte é o anúncio prévio de que o improviso terá fim, de que o precário não pode prevalecer, de que a vida tem os dias contados e não perde por esperar.

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