“Jango, Hitler, Berlusconi – política é o fim?” – José Geraldo Coutoby Eduardo Coelho |
Texto de José Geraldo Couto publicado no blog do Instituto Moreira Salles. Trata dos filmes Dossiê Jango, Hannah e A bela que dorme, que se encontram em cartaz:
O
governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, no intuito de
desqualificar os protestos diante de sua casa, disse dias atrás que eles
tinham “caráter político”. Descobriu a pólvora. Da missa do papa à
parada gay, da marcha das vadias ao show de funk, da passeata evangélica
ao passeio ciclístico, tudo é política, pois revela uma posição dos
indivíduos e grupos no convívio com o outro, com os outros, com a polis.
Nestes
tempos conturbados, nem o cinema é um refúgio seguro para quem quiser
escapar da política. Se, ao menos virtualmente, todo filme é político,
há aqueles em que a política é o cerne, o nervo, a substância. É o caso
de três títulos em cartaz nos cinemas: Dossiê Jango, Hannah Arendt e A bela que dorme.
O
primeiro é um documentário brasileiro dirigido por Paulo Henrique
Fontenelle e produzido pelo Canal Brasil. Essa origem televisiva é
responsável pelo formato de grande reportagem do filme, e talvez
explique também a escalação de Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e
Zelito Vianna – figurões do referido canal – para dizer platitudes logo
no início da narração.
Mas
depois o documentário engrena, com preciosas imagens de arquivo e
depoimentos de quem de fato tem o que dizer sobre o assunto: parentes do
biografado (em especial o filho, João Vicente Goulart, verdadeiro
condutor da reportagem), assessores, jornalistas que cobriam o centro do
poder e até agentes clandestinos da famigerada Operação Condor,
tenebrosa ação conjunta dos governos militares do Cone Sul para eliminar
opositores.
O
objetivo expresso do filme é forçar a reabertura das investigações
sobre a morte do ex-presidente João Goulart, a partir da suspeita de que
ele pode não ter morrido “de morte morrida” em sua fazenda na
Argentina, mas sido vítima de um meticuloso assassinato, digno de um
filme de detetive. Missão cumprida: saímos do cinema no mínimo com a
pulga atrás da orelha.
O
clímax do documentário é a confrontação, numa prisão brasileira, entre
João Vicente Goulart, sob o disfarce de repórter da TV Senado, e o
ex-agente uruguaio da Operação Condor Mario Barreiro Neira, que
participou da espionagem e do cerco a Jango na Argentina. A surpresa
constrangida de Barreiro quando João Vicente revela sua identidade é um
momento de alta densidade dramática, daqueles que a ficção raramente
alcança.
No
mais trata-se de uma produção bastante convencional, na linha dos
documentários políticos de Silvio Tendler, com uma condução unívoca (de
todos os depoimentos, só um, o do historiador Moniz Bandeira, refuta a
tese do assassinato) e o uso abusivo da música para induzir emoção.
Banalidade do mal
Mais
sóbrio e problematizado, paradoxalmente, é o retrato ficcional que
Margarethe von Trotta faz da pensadora alemã Hannah Arendt no filme que
leva o nome desta.
A
narrativa se desloca entre dois polos: a reflexão de Hannah (a
extraordinária Barbara Sukowa) sobre a banalidade do mal, feita a partir
de sua observação do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann em
Israel, e sua controvertida relação amorosa com o filósofo Martin
Heidegger (Klaus Pohl), ele próprio simpatizante do nazismo.
É admirável o modo como a veterana diretora de Rosa Luxemburgo e Os anos de chumbo
concilia a expressão da sutileza e da ambiguidade dos personagens com
um estilo narrativo sólido e inexorável, daqueles em que um plano parece
“exigir” o plano seguinte – numa espécie de teleologia narrativa que
tem raízes em Fritz Lang.
Do íntimo ao político
O também veterano Marco Bellocchio, que sempre buscou o lugar geométrico entre Eros e a polis, ou entre o sexo e a política, atinge o ápice da maturidade ética e artística com o esplêndido A bela que dorme.
Em torno do episódio real da jovem italiana Eluana Englaro, que levou
durante 17 anos uma vida vegetativa, até que os aparelhos que a
alimentavam foram desligados, o cineasta tece uma teia de
situações-limite nas quais se trata sempre de decidir sobre a vida ou a
morte de uma pessoa.
Além
da polêmica religiosa, o caso Eluana produziu uma crise
político-institucional profunda na Itália, pois o então
primeiro-ministro Silvio Berlusconi tentou mudar a constituição para
passar por cima da decisão da Suprema Corte de permitir o desligamento
dos aparelhos, solicitado pelo pai da moça.
Se
a questão saiu do foro íntimo para a esfera pública, provocando uma
conflagração que dividiu a Itália e repercutiu em todo o mundo, o que
Bellocchio faz, de certo modo, é devolvê-la ao âmbito privado, que é por
definição o espaço da ética e das convicções pessoais.
A
proeza do cineasta é concentrar suas múltiplas ações em dois dias e
duas noites, tendo como fio condutor a cobertura onipresente da mídia do
caso Eluana e como pano de fundo a sombra opressiva do Vaticano. As
diversas situações paralelas apresentadas permitem-lhe examinar quase
como um entomólogo o sentimento da compaixão, sem perder de vista o que
ele contém de vaidade e, eventualmente, de sadomasoquismo. Um grande
filme, em suma.
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