O crítico e o anseio da verdade
Ricardo Gondim
Crítico – Impotente que faz tudo pra brochar os outros. Quando não consegue isso, pelo menos evita que tenham orgasmo.
Millôr Fernandes
Confesso a minha indigestão quando soube que estava na alça de mira de alguns professores de seminário. Na retrógrada classe de “seitas e heresias”, eu era tratado como o mais recente despirocado da fé. A princípio me perturbei, confesso. Os desdobramentos do diz-que-me diz, as repetidas tentativas de retalhar o meu pensamento para me fazer passar por ridículo, poderiam ferir outros. Preocupei-me com os males que um ambiente inquisitorial trariam ao coração do simples ou da senhorinha, que porventura me quisesse bem.
Se no começo me incomodei, agora desdenho. Não resta muito o que fazer. O anacronismo de catalogar e desqualificar o pensamento alheio se tornou patético para mim. Estou consciente de que a tentativa de demarcar os contornos do exercício acadêmico dentro de rótulos não é apenas obsoleto, mas tosco. Tenho dó de alguém que pretende estudar teologia, mas se deixa formatar por professores que não se cansam de repetir doutrinas enlatadas como se fossem a verdade última. Mais que tolice, vestir a toga de Torquemada, é sinistro .
Tentemos entender os procedimentos da Inquisição. Talvez eles ajudem a identificar os caminhos que levaram a “legítima” preocupação de defender a fé até as fogueiras.
1. Alfinetar com precisão os pontos em que a nova doutrina se distancia do que foi sempre aceito como verdade. Para uma fé que se pretende hegemônica, é importante preservar os tils, as vírgulas, os ínfimos detalhes do que foi passado de mão em mão, de boca em boca, como a revelação divina. O biblicismo literal, nascido do fundamentalismo, tenta dar à Bíblia um caráter sobre humano. Ricardo Quadros Gouvêa responsabiliza essa atitude de gerar o dogmatismo. Para ele, o resultado prático do dogmatismo é que a Bíblia já não pode falar por si mesma, mas somente através do filtro imposto pelos fundamentalistas, a saber, o filtro do sistema de dogmas que se interpõe entre a Bíblia e o leitor… usando a Bíblia apenas como subsídio para provar a validade dos dogmas. Os versículos viram ‘dicta probanda’, isto é, os textos-prova, que servem apenas e simplesmente para comprovar o que a doutrina ensina.
2. Mostrar a perniciosidade da nova doutrina e como ela põe em risco a estabilidade e o futuro da fé. Os inquisidores tratavam os contestadores como demônios, não só pelo conteúdo de seus arrazoamentos, mas pelo risco que eles representavam à continuidade das estruturas de poder. Foucault diz que há um combate pela ‘verdade’ ou, ao menos, ‘em torno da verdade’ – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’. Os conservadores da reta doutrina não se preocupam em defender a verdade  de fato, mas o ‘estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha’.
3. Nomear a nova doutrina. O esforço de desqualificar um pensamento faz necessário colocá-lo em contornos bem definidos. Ele precisa de um rótulo, preferivelmente desmerecido em algum concílio ou alguma instância institucional do passado. Esse artifício funciona mais ou menos assim: se o trabalho de revelar o perigo deste pensamento já foi feito, não é necessário sequer considerá-lo; antes de qualquer debate, fique claro que no Concílio X, a igreja já o considerou digno da lata de lixo. Voltaire encerra seu diálogo com Benedito XIV em ‘Epílogo no Elísio’, assim: Por enquanto vós deveis perdoar a mim e àqueles que pensam como eu, os que ainda somam no sentido de esclarecer uma minoria suficientemente numerosa e resoluta para impedir qualquer reincidência da dominação eclesiástica sobre o pensamento dos homens educados. A história teria sido inútil para nós se não nos houvesse ensinado manter-nos em guarda contra a natural intolerância de uma ortodoxia no poder. Eu vos presto homenagem e vos reverencio, Benedito, mas devo permanecer Voltaire. O pensador francês se revolta porque não admite: se alguma instância de poder se percebeu autorizada para definir a verdade, ele também, o Voltaire pensante, também podia. Na liberdade individual, há espaço para romper com o círculo vicioso da infalibilidade que Queiruga denunciou: a igreja é infalível porque ela define infalivelmente que é infalível.
4. Usar o argumento ad hominem - do latim: argumento contra a pessoa. Essa falácia procura negar alguma proposição com crítica ao seu autor e não ao seu conteúdo. Um argumento ad hominem é forte arma retórica. Apesar de não possuir bases lógicas, pode anular qualquer debate.  Produz preconceito do tipo: a nova doutrina vem de um desvairado, portanto, basta provar por ‘a+b’ que ele é louco e inconsequente e ela se esvazia. Desta forma, tudo o que for dito ou conjecturado se anula a partir do rótulo que se atribui à pessoa. A verdade, no argumento ad hominem, pertence apenas aoslúcidos, aos santos, aos normais – só eles podem propor qualquer ideia. E eles, por acaso, estão na trincheira de quem detém o poder. Nietzsche não teria nada para dizer, já que morreu em um sanatório. Sequer a arte de Van Gogh deveria ser considerada, por ter vindo dos períodos conturbados de sua mente brilhante. Os que usam desse argumento, não podem esquecer que os fariseus se valeram dele contra Jesus, tentando fazê-lo passar por bêbado, comilão e endemoninhado.
5. Espiritualizar a cruzada contra a nova doutrina. Basta afirmar que um pensamento nasceu na mente do diabo e vem do inferno para que todas as defesas sejam levantadas contra ele. Em um ambiente receoso dos perigos do mundo sobrenatural, espiritualizar é eficaz. Nos tempos de Lutero, tanto protestantes como católicos se valeram do medo. Eles procuravam de toda forma denunciar o outro como agente do diabo. Os protestantes pintavam o Papa com chifres e patas, enquanto os católicos divulgavam pela Europa que o reformador alemão era a encarnação do Anticristo. A mentalidade exclusivista e obtusa de pensar que aqueles que não pertencem ao grupo são, em princípio, inimigos, foi responsável por atrocidades. Quando o debate sai do campo do diálogo e passa para ataques emotivos, ouvem-se declarações comoventes – embora ridículas do tipo: eu não quero ir para o mesmo céu que ele; quem é você para mudar Deus? 
6. Rechaçar um pensamento sem ter lido a obra. Alguns se contentam com a crítica que outros fizeram e a partir dela se colocam como verdadeiros atalaias da ortodoxia. Dizer não li, não gostei é desonestidade intelectual.  E urgente desmontar a armadilha de pensar em oposição. As ideias não se anulam em seus opostos. Numa dança dialética, sintetizam-se. Rilke afirmou:  uma coisa é verdadeira apenas ao lado da outra, e penso sempre que o mundo foi projetado com espaço suficiente para abarcar tudo: aquilo que foi não precisa ser tirado do lugar, mas apenas lentamente transformado, assim como aquilo que será não cai do céu no último momento, mas já se encontra desde sempre ao nosso lado, à nossa volta e em nosso coração, esperando o aceno que o chama à visibilidade.
Somos precários, o que sabemos é tão pouco e tão provisório que toda a pretensão de alijar quem pensa diferente não passa de narcisismo onipotente. O poema de Carlos Drummond de Andrade descreve bem a postura que devemos ter:
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Soli Deo Gloria