Ricardo Gondim
A incredulidade mais cruel
Friday, July 19, 2013, 12:48 pm
A incredulidade mais cruel
Ricardo Gondim
Ricardo Gondim
Preocupados com a sorte da minha alma, evangélicos enviam algumas advertências sem sentido: Ricardo, volte a pregar a pura Palavra de Deus. O significado da frase se perde na própria ideia de que exista alguém – fora o próprio Deus – hábil o suficiente para conseguir repetir ipsis litteris, não só as palavras, mas as intenções divinas. Para a palavra ser pura ela teria que ser exata no conteúdo e nas intenções de quem a proferiu. Não existe leitura absolutamente correta de um texto e muito menos a sua repetição. Todos são seletivos em seus discursos – toda interpretação e toda fala estão minadas por conveniências, interesses, limitações, e até venalidades.
A distância entre o que Jesus falou e o que seus seguidores pregam fica clara já na postura. Por que muitos se mostram prontos a atirar a primeira pedra? Por que aferem os demais sem a régua da misericórdia? Por que são rápidos em xingar os diferentes deraca – loucos – sem temer o fogo do inferno? Por que correm para sentar nos primeiros lugares, achando um demérito ficar fileira de trás? Se se dizem cristãos, por que tratam os textos da Bíblia hebraica- o Antigo Testamento – com mais apuro do que os ensinos do rabi de Nazaré?
Não há explicação do porquê os pretensos discípulos do Galileu não valorizarem o drama da tentação no deserto. Depois de um longo período de jejum, sem comida nem bebida, o diabo incita Jesus em três dimensões: transformar pedra em pão, saltar do alto de um prédio para ser amparado por anjos e ser dono do mundo – se prostrado o adorasse. As três ofertas representam os desejos básicos de todas as pessoas. O Filho do homem rechaça as propostas diabólicas para que fique claro: a relação com Deus não implica em pedir e receber bens materiais – qualquer um, até o mais básico, pão. Jesus não quis a proteção dos anjos; andar com Deus não significa que viveremos protegidos contra acidentes – não existe “corpo fechado”, ninguém deve esperar de Deus qualquer redoma contra os imprevistos da vida. A última e mais devastadora das tentações teve a ver com a possibilidade de conquistar o mundo inteiro por concessão exterior. E Jesus mostrou que o objetivo maior da vida não é de conquista, mas de relacionamentos verdadeiros. Amor não é dádiva, mas construção que leva tempo; é aventura que vulnerabiliza; é empenho que exige paciência.
Quantos dos que se dizem verdadeiros cristãos não hesitam em dar mais um empurrão nos já abatidos? Uma dos mais belas metáforas a respeito do comportamento de Jesus de Nazaré é que ele não termina de apagar o pavio que fumega. Uma vida que se esvai na angústia, na culpa ou no desespero jamais ouviria dele, reprimenda, ameaça ou condenação. Amar parece ser isso, acreditar no outro mesmo quando resta um fumo do que outrora já foi uma grande labareda.
Quem pensa acreditar na pura Palavra, não leva em conta que muitas recomendações dos evangelhos, quando atingem interesses, logo são interpretadas conforme a conveniência de cada um. Para testar os discursos de solidariedade e empatia com o pobre, ele disse ser de bom alvitre convidar o mendigo e a prostituta da esquina para a festa de aniversário e não os amigos influentes. A um jovem rico, Jesus receitou vender tudo e dar aos pobres – desde Francisco de Assis, quantos cristãos modernos agiram assim?
Na parábola do semeador, Jesus conta que a semente caiu em terreno duro e que, obviamente, não germinou. Terreno duro é trilha pisada; traduz o coração de gente que se abriu a vários modismos religiosos. Boa fé pisoteada endurece a alma para a magia do transcendente, para a ternura do sagrado e para o ineditismo do mistério. Os que alardeiam pregar a pura Palavra de Deus são espezinhadores, responsáveis por jogar multidões na incredulidade mais cruel: a de repetir jargão sem entender suas implicações.
Soli Deo Gloria
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