(...) a compaixão, em nossos tempos, está proibida pela Ciência. (p. 23)
Começo com um conselho: não perca tempo. Não temos tempo para ler tudo o que gostaríamos durante a nossa vida, então comece pelos melhores, os clássicos como "Crime e Castigo", por exemplo. Segundo conselho: não desista nas 100 primeiras páginas, porque é a partir daí que o livro fica irresistível e você não vai conseguir desgrudar os olhos. Esse livro é considerado pela crítica a primeira obra- prima de Dostoiévski. O autor analisa profundamente o psicológico do personagem principal, o jovem ex- estudante Rodion Raskólnikov, pobre, teve que abandonar os estudos universitários por falta de recursos, vivia sozinho num quarto de pensão esquálido e minúsculo. Ideias começaram a surgir e num dia baixo um estado febril e delirante, ele assassinou uma agiota, a idosa Alíona Ivánovna, justificando ser por fins humanitários. Também matou a irmã de Alíona,  Lizabeta, pois ela chegou na hora errada, viu o cadáver da irmã estendido no chão da sala, enquanto o assassino roubava jóias e dinheiro no quarto, objetos que nunca chegou a utilizar em benefício próprio.  Raskólnikov crê que "os fins justificam os meios". Justificam? A motivação:
Eu, a essa velha esganada a mataria e lhe roubaria, e te juro que sem o menor remorço (...). Mas veja: por um lado, uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que a ninguém serve de proveito, senão ao contrário, a todos prejudica; ela mesma não sabe para que vive e qual manhã morrerá sozinha. (...) De outro lado, energias juvenis, frescas. que se rendem em vão, sem apoio, milhares, e esto em todos os lugares. Mil obras e iniciativas boas que poderiam ser feitas com o dinheiro que essa velha dá ao monastério. Centenas, milhares talvez, de existências acarreadas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos. E tudo isso com seu dinheiro. Matá- la, tire seus dinheiros para com eles consagrar- le depois ao serviço da Humanidade toda e ao bem geral. (p. 86)
Quando a inteligência falha, o diabo a substitui(p. 95)
Raskólnikov também tem uma outra teoria, "une théorie comme une autre", que diz que os homens são divididos em seres materialistas e seres especiais; os especiais são os que nunca são submetidos às leis, por sua alta posição,  são eles mesmos que as criam, e aos materialistas nada, só o pó. O estudante assassino é fã de Napoleão Bonaparte por considerá- lo um indivíduo genial, já que cometeu crimes "necessários" sem pensar neles, sem problemas de consciência.
Dostoievski conseguiu desvendar uma parte importante da mente humana. Ele conseguiu decifrar o que, possivelmente, todo mundo pensa, sente, aquelas coisas secretas que guardamos para nós mesmos na maioria das vezes. A moral, a religião, as leis e as regras sociais podem barrar certas ações, mas não podem impedir o pensamento. Todo mundo pensa "o que não deve", principalmente se a situação é muito adversa, limite. O escritor destrincha a alma humana e suas mazelas, a pobreza, a decadência, entra numa área desconfortável, que todo mundo prefere evitar.
(...) felizes dias pretéritos. (p.25)
Feodor Dostoyevsky
O russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévsk ( Moscovo, 11 de Novembro de 1821 — São Petersburgo,  9 de Fevereiro de 1881) foi um dos maiores romancistas do universo e de todos os tempos. Pai do Existencialismo, sua obra Memórias do subsolo, já resenhada aqui no blog, uma obra existencialista de tirar o fôlego. O escritor morou em muitas casas diferentes, nunca mais de 4 anos em cada uma, as fotos abaixo são da sua última morada. Dostoievski tinha um apartamento alugado nesse edifício na rua Kuznechny Pereulok 5/2, que hoje funciona o Museu Memorial de Dostoievski em São Petesburgo. Foi nesse local que ele escreveu sua última obra, Os Irmãos Karamazov. Dostoievski viveu de 1978 até 1881 nessa casa, ano da sua morte por hemorragia pulmonar, ele tinha enfisema e ataques epiléticos.
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 O que passa na cabeça de um assassino antes, durante e depois de um assassinato? Uma machadada na cabeça "da velha" foi o que resultado de tais pensamentos e sensações desprovidadas de qualquer regra moral ou racional, uma espécie de transe. Entramos na cabeça de um homicida. O que o jovem Raskólnikov não contava é que seu crime "perfeito" teria uma delatora terrível e impiedosa: sua própria consciência, seu pior castigo. Os dois crimes acontecem logo nas páginas 99 e 100,  a maior parte da narrativa conta sobre os seus problemas de consciência e todas as suas consequências. É de tirar o fôlego, impossível parar de ler!
Dostoievski é um dos grandes escritores mundiais e isso não significa que sua escritura seja um quebra- cabeças, é uma leitura apta para leitores inexperientes, essa obra é bastante inteligível. Você vai entender muito bem a história, entrar com facilidade, será um leitor ativo, sentirá toda a angústia de Raskólnikov, a sua taquicardia, o tremor de suas mãos, a febre, o delírio e toda a sua luta interior, uma espécie de doença que precedeu o seu crime. O conteúdo vai te envolver e as 686 páginas irão deslizar leves. Sobre o perfeito título da obra, ele condensa tudo muito bem, "Crime e castigo".
                                              (...) Temo no meu coração que tenhas te contagiado com a incredulidade que agora está na moda. (p. 54)
A miséria e a privação de tudo o que é básico e digno para um ser humano é uma doença que pode provocar loucura temporária ou permanente. Uma pessoa saber- se inteligente e capaz de realizar coisas extraordinárias e não ter meios financeiros para viabilizar seus sonhos e projetos, e/ou nem ter ao menos capacidade para a própria sobrevivência, pode ser um fator importante para uma propensão à delinquência, porque a fome, a humilhação, a depressão, a exclusão social, a solidão, o abandono, a desesperança desumaniza (alguns). Ingressar na prisão, acreditem, pode ter um leve sabor a paraíso. O final é supreendente e comovente, Dostoievski nos deixou uma mensagem positiva de que o Amor pode ser a forma de salvação e renascimento, a única, talvez.
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Dostoievski, F.M., Crimen y castigo. Debolsillo, Barcelona, 2010. 686 páginas